sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXIII






PARA SEMPRE...



Saí pela porta da frente do Hospital de Caridade, onde já se encontravam a mãe, o Nando, a Mili. Enquanto o corpo dele era preparado para ser levado ao necrotério, fiz todas as ligações possíveis. Liguei imediatamente para a Neu, informando da morte do pai. Depois liguei para a Jussane e pedi que tomasse as providências fúnebres necessárias. O corpo seria buscado pela funerária Tagliari. Fiz contato com o Dr. Paulo, com a rádio Poatã, de São José do Ouro, com a rádio Educadora de São João da Urtiga. Em poucos minutos toda a região saberia que o Bernardo já não estava mais neste mundo. Pedi que a Jussane conversasse com o Padre e marcasse a missa de corpo presente para as 10 horas da manhã. Seria véspera de Natal e com certeza os familiares mais distantes gostariam de retornar para suas cidades a tempo de ainda festejarem o Natal, muito embora para alguns a data com certeza não teria mais  o mesmo brilho.

A mãe estava muda. Não chorava. Acompanhava tudo o que eu fazia com atenção, sem dizer uma única palavra. Fumou um ou dois cigarros escorada no corrimão da escada central, com o olhar perdido no horizonte, como a tentar entender o que acontecia. Naquele momento eu sentia um impulso dentro de mim que me impelia a tomar todas as providências. Em sequência, uma após a outra, automaticamente. Era como se de repente eu soubesse de tudo o que era necessário para um funeral. E naquele momento eu soube. Tudo começou a acontecer de forma natural, cronológica, passo a passo...

Por volta das 14 horas soubemos que o corpo já estava no necrotério e descemos para a parte de baixo do terreno do HC. Havia uma porta grande que levava à garagem e, entrando por ela, à direita, uma outra que levava ao necrotério. Não entramos de imediato, nem deixamos que a mãe chegasse perto daquela porta. Quando finalmente chegou o Nego Tagliari com o carro funerário, trazendo o terno e as roupas que eu havia pedido à Jussane para comprar, finalmente acessamos aquela ala e pudemos ver, então, o corpo que jazia sobre a mesa de concreto, vestido apenas com as fraldas que usava no leito da UTI. O corpo já estava frio, filetes de sangue saíam de seus braços, pelos buracos de agulha feitos em suas veias para administrar medicamentos. Seus olhos continuavam entreabertos. Passei de leve a mão sobre o rosto, de cima para baixo, de modo que suas pálpebras deslizaram e fecharam-se. Vestimos o pai. Uma sensação estranha. Nenhum de nós havia feito isso na vida, nem havíamos tido contato tão próximo com qualquer cadáver, antes. Nem mesmo de algum familiar.  Mas agíamos de forma tão natural com o corpo imóvel do pai, que parecia o contrário. E, por incrível que pareça, eu sentia uma paz muito grande ao tocar o pai ali sobre a laje do necrotério. Depois, ficamos observando o Tagliari, que dava conta dos últimos detalhes para ajeitar o corpo.  As mãos foram cruzadas sobre o peito e os dedos colados com uma cola especial para não se abrirem, assim como os lábios. O terno foi ajeitado, a gravata, a gola da camisa, e seu cabelo foi penteado. Finalmente, o colocamos no caixão que viera desde Paim Filho e só então permitimos que a mãe o visse. Já que era inevitável que o visse morto, queríamos, ao menos,  que ela não ficasse com aquela imagem do pai semi-nu no necrotério. Que o visse já no caixão, arrumado. E ela veio, aproximou-se do caixão e chorou...

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Tudo pronto, finalmente o carro funerário tomou o rumo de Paim Filho, enquanto eu ainda tinha que passar no hospital para acertar alguns detalhes. Depois, com a mãe e mais alguém que não lembro, rumei para Sananduva, onde pegaria a Neu e as meninas para levá-las conosco ao velório do pai.

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Não preciso dar detalhes do velório, que foi igual a qualquer outro, mas ressalto a grande quantidade de pessoas que se fez presente para prestar as últimas homenagens ao cidadão painfilhense Bernardo. Sem dúvida, um dos maiores fluxos de pessoas já visto na casa mortuária do Hospital Santa Terezinha. Na missa, não foi diferente. Nos confortava ver o quanto nosso pai era querido pela população. Poucos parentes deixaram de vir. E os que não vieram foi por motivo de força maior, com certeza. De Nova Prata, veio uma van lotada. De Caxias, todos os primos, mais a tia Maria. De Foz do Iguaçu a Tia Marilene e o tio Armando...

E na missa me emocionei muito em alguns momentos. Chorei copiosamente em outros. Mas o que mais me tocou foi a homenagem que o prefeito Ique prestou ao meu pai. A decretação de LUTO OFICIAL POR 3 DIAS foi demais. Desabei. Era o reconhecimento máximo da comunidade pelo que representava o passamento do meu pai. Senti um misto de orgulho e de agradecimento e virei-me para trás, procurando localizar o prefeito para agradecer-lhe ao final da missa, o que só consegui quando já deixávamos a Igreja e nos preparávamos para ir até o cemitério. Lembro de ter dado um abraço emocionado no Ique e de ter dito um “muito obrigado”. Ele ficou com os olhos marejados e só disse: “ele merecia isso...” Jamais esqueceremos esse gesto do então Prefeito. Aliás, foi a coroação de uma amizade de décadas de nossas famílias.

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No cemitério, grande número de pessoas acompanhou as últimas homenagens prestadas ao Bernardo. Feitas as orações, despedímo-nos, sob forte emoção. E Enquanto o caixão era fechado e colocado no túmulo, pedi uma salva de palmas àquela figura querida que agora nos deixava. E o som das batidas ritmadas das mãos de todo o público presente naquele momento ecoou pelo vale do Inhandava que corria ao fundo...

Foi assim, que naquele fatídico Natal de 2008...ELE SE FOI...

PARA SEMPRE...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXII




               O FIM...



Não dormi direito naquela noite. Acho que ninguém da família dormiu. Fui vencido pelo cansaço e apaguei depois de um acesso de choro convulsivo que empapou o travesseiro antes de a Neu e as meninas irem dormir. Mas acordei várias vezes durante a noite, pensamento fixo no pai, sensação de que a qualquer momento poderíamos receber algum telefonema de Erechim. Por incrível que pareça eu ainda pretendia ir até o Banco para colocar alguns papéis em ordem e acompanhar de lá a situação do pai, mantendo contato telefônico com a Mili. Até hoje me culpo por isso. Talvez eu devesse ter ficado lá no Hospital de Caridade junto delas, dormisse ou não, acompanhando ele. Talvez ele sentisse a minha presença, que sempre lhe dera segurança. Talvez seu subconsciente,  em seu corpo quase morto, clamasse por mim ao seu lado... Teimosamente, no entanto, o meu cérebro não conseguia compreender que naquele leito da CTI jazia um corpo já sem forças para reagir, caminhando rapidamente para o fim. Estranhamente, eu, que durante três anos busquei preparar a todos da família para a morte inevitável do pai, relutava agora em entender que tudo estava chegando ao fim. Restava-me ainda um fio de esperança de que ele voltasse uma vez mais para casa. Que se fosse para morrer, que morresse lá, na sua cidade natal, junto de seus amigos e familiares. Mas eu parecia não sentir que isso fosse acontecer agora. E ainda ficava imaginando como seria aquele Natal se o pai tivesse que ficar alguns dias no hospital. Como faríamos o “amigo-secreto” sendo que alguém teria que ficar cuidando dele no hospital? Iríamos mesmo comemorar o Natal sem o pai e a mãe presentes?

E foi assim que amanheceu aquele 23 de Dezembro de 2008.

Não era ainda 6:30h da manhã quando saltei da cama. Me vesti para ir trabalhar. Minha intenção era ficar no Banco até o meio-dia e depois voltar a Erexim, dependendo das notícias. Antes, porém, um telefonema para a Mili. Teria ele se recuperado durante a noite? Teria seu fígado reagido uma vez mais, com o soro e os litros de sangue administrados em sua veia?

Liguei.

- Mili, como está o pai?

- Ia te ligar agora mesmo. O médico acabou de sair da CTI e disse que ele está muito mal! Muito mal mesmo! Acho melhor vocês virem logo...

Caiu então a ficha. Era o fim. Liguei para o Nando e pedi que viessem até Sananduva. Eu os esperaria para irmos todos a Erechim. Liguei em seguida para a Rosane, minha gerente adjunta e informei que naquele dia eu não iria trabalhar. Meu pai passava mal.

Saímos pouco depois das 10 horas da manhã, já preparando o espírito para o que viria. Nem lembro quem foi comigo. Também não lembro se alguém foi com outro carro, acho que o Digo. Só sei que chegamos ao hospital faltando 10 minutos para o meio-dia. E rumamos imediatamente para a CTI, onde já estavam a mãe e a Mili.

Quando cheguei à ante-sala, onde elas haviam passado a noite, conversamos rapidamente. A Mili contou de um sonho que a mãe tivera naquela noite, em que o pai teria chegado até perto dela e dito algo como “desta vez eu vou...” E a mãe teria chorado muito. Contou alguns detalhes do que acontecera durante a noite no hospital, de como se haviam acomodado para tentar dormir.

E enquanto conversavam, pedi onde ficava o banheiro e me dirigi até lá.

Mal acabei de fechar a porta e ouvi um grito, seguido de batidas na porta do banheiro.

- Marco, Marco, venha rápido...ele está indo...!

Saí rapidamente do banheiro e corri até a CTI, abrindo caminho por entre as pessoas que se acotovelavam na fila aguardando para visitar familiares no corredor que antecede a grande sala. No caminho, cruzei com a mãe em desespero sendo amparada pela Mili. Fizeram-me sinal para que entrasse. Ao lado do leito estava o Digão, segurando a mão do pai e olhando para o visor onde uma linha reta e um apito contínuo indicavam que aquele coração já não pulsava. Embora eu ainda tivesse conseguido ver duas ou três batidas fracas serem registradas pelo eletrocardiógrafo. Eram exatamente 12 horas do dia 23 de Dezembro de 2008. Seu corpo, ainda mais amarelo, permanecia quente. Seus olhos, entreabertos. E a boca parecia sorrir, deixando a impressão de que morrera tranquilamente, sem sofrimento. Lembro que a única coisa que me ocorreu fazer naquele momento foi sussurrar em seu ouvido ...”vai tranqüilo, meu pai, vai tranqüilo...” E saí rapidamente da sala. Precisava avisar o mundo que acabara de falecer o meu maior amigo.



quarta-feira, 30 de novembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXI




DERRADEIROS MOMENTOS



Assim que deixei a sala, entrou o Abílio, que ficou um tempo maior com ele. Havia um recado do Dr. Paulo para que eu fosse até o seu consultório, no prédio ao lado. Queria falar comigo. Convidei o Digão prá ir junto. Eu já imaginava qual seria a conversa. E não errei. Ele foi direto ao assunto. “Tudo o que era possível foi feito. Já foi um milagre ter chegado vivo até aqui, com todo o sangue que perdeu. Lhe administramos sangue e soro, o que lhe deu ainda alguma energia, mas o seu fígado está com as funções praticamente zeradas. Se ele ainda assim se recuperar, gostaria que vocês soubessem que nada mais há por fazer. Ele não suportaria nem uma próxima alcoolização...” Por um momento, ficamos pensativos, ao mesmo tempo em que absorvíamos o que o doutor falava. É interessante como a gente, mesmo sabendo de toda a situação, fica abalado quando ouve a sentença de morte da boca do médico. Tudo o que ele falou a gente já sabia ou imaginava, mas o choque de ouvir dele aconteceu do mesmo jeito. Talvez porque aquelas palavras, vindas do especialista que tratara dele desde o primeiro momento, significavam o fim de qualquer fio de esperança que ainda pudesse restar. Lembro de ter comentado com ele: “Dr. Paulo, a melhor coisa que poderia acontecer com o pai, quando nada mais restar a fazer, seria ele não mais se acordar...tenho certeza que o sofrimento psicológico dele, sentindo que vai morrer, seria muito maior do que qualquer sofrimento físico...”

Retornamos ao outro prédio e nos acomodamos na ante-sala da CTI, onde já estavam a Mili, a mãe, o Nando, o Abílio. O clima não poderia ser pior. Era visível o abatimento de todos. Nem lembro se comentamos com eles sobre as palavras do Dr. Paulo. Não era preciso. Cada um de nós, ao seu modo, sabia que estávamos diante dos últimos momentos do pai. O Abílio ainda comentou conosco que o pai havia sussurrado a ele que”...não querem me operar...” ficando ainda mais claro que ele mantinha uma última esperança de sobreviver em seus agora raros momentos de lucidez.

Já passava das 17 horas e as visitas na CTI estavam encerradas. Nos organizamos para retornar. A Mili e a mãe passariam a noite no hospital e nos manteriam informados sobre a situação. Se o pai melhorasse, iríamos nos organizar para um revezamento, já que não havia onde dormir senão nas poltronas da sala de espera, onde mal caberiam duas pessoas. E assim foi. Voltamos, entre apreensivos e ainda esperançosos de que algum tipo de milagre o mantivesse vivo por mais algum tempo. É assim mesmo que as coisas são. Mesmo na morte iminente, sempre se quer adiar os últimos momentos junto aos nossos entes queridos.

Quando cheguei em Sananduva, encontrei a Neu e as meninas mergulhadas no trabalho. Era o dia 22 de Dezembro e as encomendas de Natal acumulavam-se. Não tive como não juntar-me a elas. E enquanto dividíamos as tarefas, cada qual com suas “habilidades” fui fazendo um relato de tudo o que acontecera naquele dia, e a emoção tomava conta de todos na medida em que os fatos vinham à tona. Ficamos até por volta das 22 horas trabalhando e não agüentamos o cansaço. Meu plano era ir ao Banco trabalhar no dia seguinte, pois muita coisa já ficara acumulada e eu pretendia passar o Natal com o serviço mais ou menos em dia. Antes de  deitar, liguei para a Mili para saber notícias. Soube, então,  que ele havia entrado em coma profundo.



terça-feira, 15 de novembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LX






“DESENGANADO”





Enquanto dava meia-volta e já um pouco nervoso, decidi ligar para Sananduva para informar a Neu e as meninas. Prontamente a Neu sugeriu que eu passasse por lá antes de seguir para Erechim e que convidasse também meus irmãos para que viessem a Sananduva e dali rumássemos para o Hospital de Caridade. Tínhamos que fazer o trajeto por Coxilha, já que a estrada por Maximiliano de Almeida estava novamente intransitável. Assim foi feito. O Nando, o Digão e Sandro iriam comigo. A Mili iria depois, com a mãe.

Ainda na viagem, próximo de Tapejara, recebi um telefonema do Nando. “Boa notícia” – disse ele. “O pai chegou vivo! E já está na CTI, medicado”. Estranhamente, a maneira como me deu a notícia parecia deixar implícito que ainda acreditava num milagre, como se o pai, saindo dessa, voltaria a uma situação de “normalidade” dentro do seu quadro. Foi essa a impressão que eu tive ao desligar o telefone. No entanto, até pelas palavras que eu ouvira do Dr. Paulo, eu sabia que não havia mais volta. Se conseguisse sobreviver a esse revés, seria questão de dias para um desfecho. E eu temia, agora, que chegasse aquele momento mais difícil, em que o pai passaria a ficar acamado, definhando aos poucos, num sofrimento que não experimentara até então.

Quando chegamos a Erechim já passava das 13 horas. Ninguém quis almoçar. Fomos direto à CTI do hospital e nos acomodamos na sala de espera, ouvindo da Jussane o relato da terrível viagem de ambulância. Contou que a hemorragia não parou um instante sequer e que fora necessário parar várias vezes para que o pai vomitasse aquele “sangue vivo”, que literalmente jorrava de sua boca. Era assustador. Ele permaneceu consciente, mas foi ficando mais fraco a cada quilômetro do trajeto e no final da viagem já dormia profundamente. Segundo ela, o médico que acompanhou-os no trajeto literalmente gritava ao motorista : “Rápido! Pisa fundo! Tem que ir mais rápido!...” Certamente sabendo da gravidade do caso. Ainda, segundo a Jussane, ao chegarem no hospital encontraram tudo preparado. O Dr. Paulo havia tomado todas as providências e em questão de minutos o pai já estava entubado, com um litro de sangue e outro de soro em suas veias. Fantástico o trabalho do Paulo. Desde o primeiro momento mostrou-se um profissional de primeira linha, responsável, correto, dedicado. Aliás, comove-nos lembrar que assim fomos tratados por todos os profissionais que nos atenderam durante a doença do pai. Mas o Dr. Paulo merece um destaque à parte por ter sido o nosso médico do primeiro ao último instante, desde a descoberta da doença até o momento em que o coração do pai deu sua última batida.

Enquanto aguardávamos o momento de visitar o pai na CTI chegou o Abílio Vanz, que levava a Mili e a mãe.

Saímos um pouco para fazer um lanche no restaurante do hospital e quando voltamos o horário de visitação já estava aberto. Já havia uma fila no corredor e os familiares dos doentes internados eram liberados um a um para entrarem na CTI. Quando chegou a minha vez, entrei antes que a mãe deixasse a sala e os funcionários permitiram, até porque percebiam que a situação do pai era gravíssima. O sangue reposto e o soro na veia lhe haviam devolvido alguma energia, de modo que conseguia balbuciar alguma coisa, mesmo com o nariz atravessado por duas sondas. Ao vê-lo naquele leito, o tempo retrocedeu e voltei aos momentos de logo após a cirurgia, lá em 2006, quando o encontrei pela primeira vez, na recuperação do Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Suas funções hepáticas estavam tão deterioradas que seu fígado agora funcionava menos do que aquele micro pedaço do órgão que lhe haviam deixado na cirurgia. Sua pele era amarela como gema de ovo. Estava suado e frio. Seus olhos, que sustentava entreabertos com grande dificuldade, estavam ainda mais amarelados, evidenciando que tudo voltara à estaca-zero, como lá no início. A mãe ficou de um lado da cama e eu do outro. Como sempre, olhei para ele e perguntei: “Como está, pai?” Mas ele quase não conseguia falar. E num balbucio extremamente anasalado por causa das sondas pronunciou algo que entendei como ...”vão fazer cirurgia?”... “Não, pai”, - respondi – “agora não tem como fazer cirurgia...você tem que descansar...” Ele estava consciente da situação, claro. E o instinto de preservação da vida lhe fazia crer que ainda restava uma saída. “Cirurgia”. O que pensava naquele momento? Que cirurgia seu cérebro imaginava ser possível ainda que pudesse salvá-lo da morte iminente? Foi angustiante por alguns momentos, porque percebi isso na hora. Ele desejava viver um pouco mais. Nós também queríamos que vivesse. Muito mais. Que ficasse conosco. Mas a natureza teimava em dizer “chega!” Enquanto a mãe segurava sua mão, ele murmurou mais alguma coisa e remexeu-se na cama, demonstrando que algo o incomodava. A mãe pôs o ouvido perto de sua boca e entendeu que  sua perna esquerda não estava confortável. O acomodamos melhor e ele sossegou. Dei-lhe um beijo na testa fria e suada, passei a mão uma vez ainda no seu rosto e disse que ficasse tranqüilo e descansasse. Peguei a mão da mãe e a convidei para sairmos, que os outros também queriam vê-lo. Foi a última vez que tive contato com ele ainda vivo!





sábado, 1 de outubro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LIX






A INTERNAÇÃO DEFINITIVA



Na noite de Domingo voltei a ligar para eles. A Jussane atendeu o telefone e perguntei como o pai estava. “Não muito bem”, foi o que ela disse, “ele continua se queixando do estômago e de gosto de sangue na boca...” Pedi para falar com ele. Quis ouvir dele mesmo como estava. “Ainda não melhorei muito bem”, ele falou. “Nem consegui comer direito; parece que tem um peso no estômago...” A mesma queixa. Sinal de que o seu esôfago fora bastante judiado na última endoscopia. De qualquer forma, lembrei-lhe que no dia seguinte eu estaria indo a Passo Fundo, que ficasse tranqüilo, que logo tudo iria se acomodar.E fui dormir, extremamente preocupado. No dia seguinte eu teria a última reunião mensal do ano na Superintendência e precisava ir.


*******************


Tive que acordar cedo. A reunião era às 9 horas da manhã, mas a estrada estava horrível e havia máquinas tentando recuperá-la, de modo que em alguns trechos o trânsito era parado por alguns minutos, atrasando a viagem. Senti vontade de ligar prá saber como o pai estava, mas imaginei que estivesse descansando. Houvesse algum problema mais e teriam me ligado. Assim, segui viagem. Talvez qualquer outro gerente tivesse ligado para a chefia e pedido dispensa da reunião, alegando que seu pai não estava bem. Seria absolutamente normal. Mas não eu, o grande “caxias”. Eu tinha que ir. A responsabilidade do trabalho acima de tudo... Apesar de que até aquele momento eu não tinha conhecimento do que se passara naquela madrugada de Segunda-Feira.


Quando eu me aproximava do trevo de Coxilha, o celular tocou. Era da farmácia. Atendi e pedi que ficasse na linha enquanto eu contornava o trevo. Estacionei na rua lateral, que leva ao posto de gasolina da rodovia. E ouvi a voz da Jussane. “Marco, teu pai não está nada bem” – disse ela- “Já chamamos uma ambulância e estamos levando ele para Erexim.” Perguntei o que havia acontecido. “Ele passou a noite toda com sangramento. Já empapamos várias toalhas com sangue que sai pela boca. Segundo a tua mãe, ele passou assim a madrugada toda. De manhã falamos com o Dr. Olando e ele disse que temos que levar ele urgente para Erexim. A ambulância está encostando...tenho que desligar...” “Ok, respondi – me mantenha informado. Só vou para a reunião e depois vou direto de Passo Fundo para Erexim...”


Que coisa!


Nem assim a minha ficha caiu. Fiquei me perguntando porque não tinham me ligado de madrugada. Depois a mãe me falou por quê: não quis me acordar porque sabia que eu ia levantar cedo para viajar (vê se pode). Mas, como eu disse, nem assim “caiu a ficha”. Eu continuei no rumo de Passo Fundo, determinado a participar daquela reunião, que devia ser importante, claro, mas será que era mais importante do que o meu pai? Que coisa! Até hoje não me perdôo por essa atitude, embora o restante da viagem me fezdirigir de forma automática, já que meu cérebro estava focado no problema do pai.


Foi então que veio o fatídico telefonema do Nando:


- Marco, a coisa tá complicada. A Jussane está indo junto, na ambulância. O quadro é extremamente grave. O pai está com uma hemorragia digestiva violenta. Já perdeu muito sangue e continua sangrando abundantemente. O Dr. Olando disse que não sabe se ele chegará vivo em Erexim...


Estacionei o carro naquela estrada paralela que tem um pouco antes do trevo da entrada de Passo Fundo, recostei-me no assento e só então raciocinei melhor. O que eu estava fazendo que não estava do lado do meu pai nessa situação de gravidade? Será que o Banco era mais importante que o pai? Será que uma reunião, por mais importante que pudesse ser, ainda assim tinha mais valor do que o meu pai? E (enfim) tomei a decisão: liguei para a Superintendência do Banco e informei que não compareceria porque meu pai estava passando mal e eu precisava acompanhar. E fiquei com um certo remorso quando ouvi da Sureg que “não tinha problema”. “Vai lá e fica com teu pai”, me disse a Mariluz, colega da Superintendência. Aí, sim, “caiu a ficha”. Eu havia subestimado a gravidade do que acontecia com o pai e, por isso mesmo, colocado naquele momento o Banco acima dele. Por um momento, pedi a Deus que ele sobrevivesse àquela situação, porque eu não me perdoaria...


Dei meia-volta e rumei para Erexim. Sabia onde encontrá-los. O Hospital de Caridade vinha sendo quase a segunda casa do pai nos últimos 3 anos...

sábado, 3 de setembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE   LVIII




O ÚLTIMO DOMINGO




Voltamos cedo de Bela vista. Eu não estava confortável e todos sentiam isso ao conversar comigo. O assunto, aliás, foi o mesmo em todo o tempo em que estivemos na casa dos meus sogros. Tudo girava em torno do Bernardo, do tempo que ainda lhe restava. Naquele momento, eu imaginava que ele ainda pudesse sobreviver alguns meses. Os exames eram claros em demonstrar a gradativa e agora acelerada deterioração de seu fígado, já comprometendo também a função de outros órgãos. As palavras do Dr. Paulo, dizendo que não haveria como fazer novos procedimentos de alcoolização, sinalizavam que de agora em diante era “esperar prá ver”. Só se faria procedimentos paliativos, como forma de aliviar evetual sofrimento físico. Quanto tempo ele ainda sobreviveria era uma incógnita. Disse isso aos meus irmãos, já conscientes do que acontecia naquele momento e insinuei à minha mãe, que teimava em não aceitar. Mas o fato é que de agora em diante a tendência seria ver a situação piorar gradativamente. Imaginei meu pai por longos dias acamado, suas funções deteriorando, sua vida aos poucos se esvaindo. Imaginei tê-lo conosco, talvez, até o seu aniversário, em Abril de 2009, quando completaria seus 67 anos. Ou, com alguma sorte, até além disso. Mas não muito mais.

***

Retornamos por Paim Filho, a fim de visitá-lo antes de seguir para São José. Chegamos por volta das 16 horas. Encontramos o pai recostado no sofá, na mesma posição em que o havíamos deixado no Sábado. Era como se nem tivesse de lá se levantado. Não sorriu ao nos ver, como das outras vezes, e demonstrava um ar cansado, uma expressão de desânimo. Tentei brincar com ele, como sempre fazia, mas não obtive nada além de um leve e quase imperceptível sorriso. “Como está, veio???” – era o que eu sempre dizia e que ele sempre rebatia com alguma expressão engraçada. Mas desta vez ele não fez isso. “Não me sinto muito bem...” – foi o que ouvi dele. Sentia ainda aquele “peso no estômago”, uma sensação ruim no abdômen. Quase não havia comido nada e por isso estava meio sem forças. Puxei outras conversas, não sem antes dizer que não se preocupasse, que iria passar, que era ainda efeito da medicação e dos procedimentos realizados pelo Dr. Paulo. Mas bobo ele não era. Devia desconfiar de que algo desta vez estava diferente. Pediu do resultado dos exames, pediu da conversa que tive com o Dr. Paulo. Tentei dissimular, minimizando tudo e repetindo que não se preocupasse, que tudo estava bem. Então ele até começou a conversar um pouco mais e mudamos de assunto. Sentei ao seu lado, peguei sua mão, falei dos planos para o almoço de Natal, do amigo-secreto. E ele pareceu ficar mais tranqüilo. Depois, na cozinha, conversei um pouco com a mãe. Perguntei como ele tinha passado a noite e ela me confidenciou que ele reclamava de sentir gosto de sangue na boca e que às vezes até cuspia sangue no banheiro. Informei que provavelmente ainda eram resquícios do que havia sido feito com as varizes do seu esôfago, mas que ficasse atenta, pois sangramento no tubo digestivo pode ser uma condição grave e ele estava agora com as varizes muito proeminentes, segundo o médico.

Então, enquanto ele continuava assistindo ao programa do Faustão, sentado na mesma posição e sem esboçar mais do que pequenos movimentos, despedimo-nos dele e da mãe e rumamos de volta a São José do Ouro. No dia seguinte eu teria que viajar a Passo Fundo para uma reunião na Superintendência do Banco. Mal sabíamos que aquele tinha sido o último Domingo em que o veríamos com vida.



terça-feira, 9 de agosto de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LVII




PERTO DO FIM





Era Sábado de manhã. Deixei-os em Paim Filho quase ao meio-dia. Com dificuldade, ainda enfraquecido pelos quatro dias de internação, antebraços arroxeados pelas perfurações das agulhas, o pai acomodou-se no sofá da sala, com dois ou três travesseiros trazidos pela mãe. Estava muito fraco. Muito mais do que das outras vezes. Tanto que adormeceu imediatamente ao recostar-se. Fui até a cozinha e conversei um pouco com a mãe. Ela também sentia que ele não estava bem, mas, como sempre, não admitia que fosse qualquer coisa além de um cansaço um pouco maior, causado pelo efeito dos sedativos. Tentei explicar-lhe então o que o Dr. Paulo me havia dito com relação às varizes esofágicas e ao estado atual de seu fígado. Mas ela não queria ouvir. Seu cérebro não admitia sequer a possibilidade de pensar que o pai não iria se recuperar. De alguma maneira ela tentava convencer a si própria de que não iria chegar o momento de separar-se definitivamente do companheiro de 45 anos. Mas a realidade teimava em dizer o contrário. No fundo ela sabia, sim, que o desfecho estava se aproximando. Talvez apenas tentasse diminuir seu próprio sofrimento ante a iminência da perda.

Voltei para a sala e sentei-me ao lado do pai, que permanecia sonolento. Ele abriu os olhos e ficou me olhando por alguns momentos. Perguntei como estava. “Não muito bem...” foi o que ouvi. Era raro escutar dele que não estava bem. Dificilmente se ouvia uma queixa, nem nos momentos em que a dor mais lhe castigava por ocasião dos tratamentos. Sinal de que algo realmente não estava “de acordo”. “O que você sente, pai?” – perguntei. Ele respondeu que sentia um desconforto no abdômen, uma sensação de “peso no estômago”. Para mim já era evidente que os procedimentos feitos pelo Dr. Paulo haviam mexido demais com suas vísceras e o corpo reclamava. Mesmo assim, imaginei que com algum descanso ele ainda se recuperaria e em dois ou três dias estaria bem novamente, considerando seu problema. Não lhe falei em detalhes sobre o que havia sido feito em seu esôfago, mas informei-lhe das varizes e do procedimento que fora necessário. Também lhe disse que o problema estava resolvido, que não se preocupasse. Agora era descansar e aguardar. Dei-lhe um beijo na testa, despedi-me da mãe e voltei para São José do Ouro, onde a Neu e as meninas me esperavam para o almoço.

Naquele final de semana havíamos combinado de almoçar com os pais da Neu, em Bela Vista, já que no Natal costumávamos nos reunir em Paim, com a minha família. E o Natal seria na Quarta-Feira.

Liguei de tarde, liguei à noite. Nos dois momentos ele me disse que ainda sentia o mesmo mal-estar, mas que parecia estar melhorando, o que me deixou um pouco mais tranqüilo.

No Domingo, fomos então para Bela Vista. Fizemos um almoço tradicional. Meu sogro fez fogo na churrasqueira, levamos alguns quilos de carne para assar. Meus cunhados almoçaram conosco. Não consegui disfarçar minha preocupação com o pai. É claro que eu sabia que o fim dele se aproximava. Mas quem admite isso de fato? Sempre, lá no fundo, resta uma esperança final, uma fagulha de sonho a esperar pelo milagre impossível...Mas a verdade é que estava sendo muito duro admitir a perda do meu pai. Em meu íntimo travava-se agora uma luta ferrenha entre o meu jeito alegre de ser e a imensa tristeza que teimava em se instalar. Não tinha mais como disfarçar. Aquela rocha dura, aquele “porto seguro” da família em todo esse tempo estava prestes a ruir...



sábado, 9 de julho de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE   LVI
                                         
              O pai, numa tarde qualquer de 1974, em Paim Filho (foto antiga)



O RETORNO... E A ÚLTIMA INTERNAÇÃO


                             Desta vez eles não ficaram muito em Bento.  O pai praticamente ficara dentro do apartamento durante todo o tempo. Fraco, a única coisa que podia fazer era permanecer sentado no sofá da sala acompanhando a mãe diante da TV.  Mesmo que a família da Mili tentasse distraí-lo, não devia ser fácil para ele encontrar prazer em qualquer divertimento. Bastava-lhe, por certo, estar próximo deles.  Foram tiradas algumas fotos e até nelas era possível perceber um estado de ânimo abalado, embora ele procurasse dissimular, sempre dizendo estar bem.
                                 Na volta, nova internação.
                              Ele não se sentia bem. Reclamava de incômodo no abdômen. Referia uma sensação de estômago cheio, de digestão difícil, de estar permanentemente meio enjoado. Marcamos nova visita ao Dr. Paulo, mesmo que se tivessem passado pouco mais de 45 dias.
                                 A nova tomografia mostrou que os nódulos permaneciam ativos e em crescimento. A alcoolização não fazia mais efeito. As células cancerígenas agora multiplicavam-se numa velocidade muito maior, como se quisessem nos dizer “agora chega, acabou a brincadeira...”. Mesmo assim, novo procedimento foi realizado, não tinha como ser diferente. E além da alcoolização, foi necessário tratar das varizes esofágicas, efeito colateral sério da insuficiência hepática. A sensação de “peso no estômago” que ele sentia nada mais era do que uma pequena e constante hemorragia, gerada pelo rompimento de pequenos vasos no seu esôfago .  Muito preocupante.  Foi necessária agora uma internação de quatro dias. A mãe ficou com ele todo o tempo, de novo, em que pese as precárias condições de acomodação para os acompanhantes no Hospital de Caridade. Fui buscá-los no Sábado, dia 20 de Dezembro. Pela primeira vez, ao receber a sua alta, não senti nenhuma firmeza. Ele não parecia bem. Estava alegre por poder sair do hospital depois de quatro dias, mas exibia uma fisionomia cansada, uma fala arrastada e um estado de ânimo muito diferente de todas as internações anteriores.
                         Antes de deixar o complexo do hospital, o Dr. Paulo quis conversar reservadamente comigo. Disse ter sido necessário um procedimento mais efetivo de “estrangulamento” das varizes esofágicas. Algumas delas estavam muito proeminentes e a ponto de romperem-se a qualquer momento. Fez o que era possível, mas comentou: “estou muito preocupado com as varizes. Fiz o que podia através da endoscopia digestiva e consegui estancar a pequena hemorragia que ele tinha, mas constatei outras bem maiores. Além disso, não sei o que houve, mas os nódulos simplesmente explodiram. O fígado dele já não dá conta de se recuperar e o câncer avançou muito nos últimos dois meses. Acompanhem e qualquer coisa me liguem.”
                        Viajamos de volta a Paim Filho. Foi a derradeira etapa do seu tratamento.

domingo, 19 de junho de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LV




ÚLTIMA VIAGEM A BENTO



Depois do episódio da missa o pai seguiu se recuperando da última alcoolização. No entanto, começou a ficar mais visível um decréscimo de suas energias. Já houvera melhores momentos ao longo de sua doença. A rotina estava mantida, mas os almoços de Domingo mostravam agora um componente que para mim era indicativo de que a curva começava a ser irreversivelmente descendente. Ele mal beliscava a comida. Pequenos pedaços de carne entremeados com os acompanhamentos e um pedido para se retirar em direção à cama quando ainda recém começávamos a comer viraram rotina. Seguíamos na mesa invariavelmente sem ele. Quando lhe perguntávamos como estava, a resposta era sempre um “estou bem”, mas a sua fraqueza saltava aos olhos. O fígado castigado pelas dezenas de perfurações e pela morte constante de células hepáticas já não dava conta de transformar alimento em energia na dose que seu organismo necessitava. Assim, uma insuficiência hepática antes controlada agora começava a dar sinais preocupantes de um caminho sem volta.

A mãe também exibia sinais de muito cansaço. As noites mal dormidas e a necessidade de acompanhar o pai a todo momento também lhe tirava as forças. E ela exibia uma irritabilidade que buscava conter na nossa frente, além de uma tristeza cada vez maior, com pequenos acessos de choro quando nos encontrávamos mais reservadamente. No fim, a família toda estava preocupada. Os nossos encontros já não rendiam as mesmas risadas, estavam sem graça. E até um certo sentimento de culpa nos assediava, por ficarmos à mesa degustando o churrasco enquanto o pai não estava mais à mesa. Sem dúvida, era um prenúncio de como seria difícil tocar a vida sem a sua presença quando o perdêssemos definitivamente.

Em Novembro o levamos novamente até Erechim, para mais uma sessão de alcoolização. Desta vez foram necessários três dias de internação. Além do tratamento normal, o Dr. Paulo identificou, em uma endoscopia, que as varizes do esôfago estavam muito grandes, ameaçando romper-se a qualquer momento, o que causaria uma hemorragia digestiva grave e perigosa. Fez um procedimento paliativo, estrangulando os pontos mais críticos das varizes e evitando um desfecho mais trágico. O pai deveria ser observado e a qualquer sinal de sangramento deveria ser feito um contato com o médico.

De volta a Paim Filho, o pai mostrou o desejo de viajar para Bento Gonçalves quando se recuperasse. Mas estava muito fraco. Seria preciso alguns dias mais até que se recuperasse bem do tratamento. Nos resultados dos exames, a decepção: os nódulos não regrediam mais. O tratamento começava a não dar mais conta de barrar a progressão dos tumores. Estávamos perdendo a luta para o câncer. Mas não lhe passamos as informações. Embora com acesso aos laudos, tentei dissimular da melhor forma possível os resultados, tentando confundir-lhe ao máximo, para que não tivesse ele a mesma impressão que nós. Mas acho que não tinha como ele não se dar conta do que acontecia com seu organismo. Ele sabia, sim, o estágio em que se encontrava.

Talvez por isso tenha insistido tanto para viajar a Bento Gonçalves, mesmo com suas energias tão escassas. Ele sabia que seria sua última viagem.



sábado, 28 de maio de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE   LIV
                                    


     DESPEDIDA OFICIAL???



        Na metade do ano houve um período em que ele estava se sentindo muito bem. Depois de uma das idas a Erexim, seu fígado parecer reagir melhor. Uma das tomografias mostrava um estacionamento dos tumores, mesmo que agora fossem três deles a nos preocupar. O último, descoberto no início de 2008, estava com pouco mais de 1 cm. Os outros dois haviam crescido e um deles já se aproximava de 2,6 cm. Preocupante, mas mantinham-se estacionados naquela etapa do tratamento, o que também deixou o pai um pouco mais tranqüilo do que das vezes anteriores.  Talvez por isso mesmo sentiu-se melhor e de novo nos fez manter a esperança de prolongar sua sobrevida.
        Até hoje me pergunto o que o levou a ter uma atitude para nós inusitada naquele inverno de 2008. O que teria ele em mente ao marcar uma missa na Igreja de Paim Filho, “para agradecer a Deus pela minha saúde” ? Não lembro a data, mas tenho presente o frio daquela noite. Ele ligou para nós e pediu que não faltássemos. Que estivéssemos todos presentes à missa da noite, naquele sábado. E o mesmo convite estendeu ao Nando e, acredito, a seus melhores amigos. A Igreja não estava cheia. A noite era fria e os casacos eram pesados. Encolhido em seu sobretudo e curvado pela fraqueza  o pai  rezou e cantou com sua voz trêmula e fraca, como que relembrando os bons tempos em que integrava o coral da Igreja, fazia as leituras, recolhia as esmolas. Quem sabe suas lembranças o levassem até os tempos em que atuava como coroinha, ou mesmo  o fizessem divagar sobre os áureos tempos da Ordem Terceira Franciscana. O fato é que aquela noite, para ele, era uma noite de agradecimento. E, entendendo a mensagem, rezamos com ele da forma mais compenetrada possível. E quando o padre  leu as intenções da missa e citou “em agradecimento pela saúde do Bernardo”, acho que não houve ninguém que não tivesse se emocionado. Afinal, era um contra-senso. Como podia uma pessoa com uma doença em fase terminal, tendo passado por todo aquele sofrimento, estar ali, diante do altar, agradecendo a Deus “pela saúde”? Foi muito comovente. Com o canto dos olhos, percebi que todos olhavam para o pai com o mesmo sentimento de comoção. Sinceramente, acho que aquela missa foi a sua despedida “oficial” da comunidade. Hoje não tenho mais dúvidas de que ele sabia que agora caminhava MESMO para o fim.   Só não tinha noção de quanto tempo ainda lhe restava. Assim preferiu não arriscar e realizar seu “encontro final” com os amigos e familiares diante de Deus. E agradecer-Lhe pelo tempo de sobrevida pareceu uma necessidade inadiável. Deus lhe fora bondoso. Permitira que retornasse ao convívio de familiares e amigos e ali permanecesse por um tempo além do que se previa ao detectar-se sua doença. Imperioso agradecer. Acredito que a partir daí tudo se consumara. Estaria em paz com sua consciência. Redimido de qualquer erro cometido ao longo de sua vida em relação a quem com ele convivera e em paz com o Criador, fazendo-lhe um último agradecimento público.  São essas coisas, são esses comportamentos que meu pai exibia que o tornavam tão amado por quem quer que o conhecesse. Não sei se um dia conhecerei alguém como ele. E disso me orgulho, de haver tido o  privilégio ter sido filho de um ser assim iluminado, de tão rara figura nesses tempos  em que impera a maldade, a incompreensão e a  intolerância.    

domingo, 1 de maio de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LIII




SINAIS



Depois daquela etapa do tratamento as coisas começaram a não andar bem. Eu já estava morando em Sananduva. Um pouco mais distante do que São José do Ouro, mas ao menos eu podia viajar em uma estrada asfaltada para visitá-lo. A cada nova internação percebia-se que o seu organismo ficava mais fraco. Os exames de sangue mantinham-se estáveis, mas quando recebíamos o resultado das tomografias tínhamos a exata noção de que os tumores já não reagiam tão bem ao tratamento. Como resultado, voltaram os episódios de acúmulo de líquido no abdômen e no pulmão, embora sem a gravidade das crises de 2006. Vez por outra manifestava-se a encefalopatia. Quando o fígado funcionava mal, ele ficava extremamente agitado e não conseguia dormir, a ponto de ficar mais de 24 horas acordado. Era complicada essa situação. A mãe ficava esgotada, pois também não conseguia ter um sono reparador, mesmo que o pai não fosse daqueles pacientes que ficam chamando o tempo todo e exigindo cuidados permanentes e ininterruptos. Longe disso. Ele tinha noção de que ela precisava dormir e evitava atrapalhar-lhe o sono. Mas não tinha jeito. Uma hora ou outra ele precisava ir ao banheiro, ou levantava-se insone e ia para a sala ligar a televisão. E a acordava, com certeza. Durante o dia, quando lhe batia finalmente o sono, a mãe tentava não deixá-lo dormir, acreditando que assim ele dormiria à noite. Mas era pior. A ação dos remédios receitados pelo médico para amenizar a encefalopatia era forte e acabava tendo esse efeito colateral. Não obstante, tentando resolver o problema da falta de sono, o médico havia receitado um ansiolítico, que por sua vez acabava dando efeito contrário, gerando um círculo vicioso insolúvel. Certa noite o pai bateu na casa do Nando à 1 hora da madrugada. Meu irmão assustou-se e perguntou se havia acontecido alguma coisa. “Não – respondeu ele – eu estava sem sono e vim aqui conversar com você...” Só que o Nando também tinha que ir cedo para o trabalho e não poderia lhe dar atenção àquela hora. Conversou um pouco com ele e ligou a TV para que assistisse enquanto tentaria dormir mais um pouco. Mas não demorou até o pai chamá-lo querendo ir prá casa. Vestiu-se, então, e o levou até a farmácia. A mãe estava tão cansada e tão abatida pelas horas em claro que só se acordou quando os dois entraram no quarto. Surpresa e assustada, ficou sabendo só ali que o pai tinha saído de casa sozinho àquela hora da madrugada e retornado com o Nando.

Começamos a perceber que o vigor físico do pai começava a diminuir gradativamente. Mesmo assim ele e a mãe viajavam a Bento Gonçalves de vez em quando, onde ficavam por 10 ou 15 dias. Rever os netos Nain e Amanda era sempre algo que lhe renovava as forças. Mas cada viagem estava ficando mais complicada pela dificuldade cada vez maior para se locomover. Quando voltava de lá, quase sempre era hora de levá-lo para outra etapa do tratamento, pois a parte final do prazo dado pelo médico para retorno era sempre a fase em que seu fígado já estava melhor recuperado da agressão causada pelas alcoolizações. E as próprias internações começavam a ser mais longas. Se no começo bastavam dois dias, agora a estada no hospital estendia-se até por 4 dias.

A chegada do inverno sempre era outra preocupação. Seu organismo debilitado ficava sempre à mercê de doenças pulmonares. Não podíamos nos descuidar da vacina da gripe para ele e para a mãe. Nos dias de frio extremo, recomendávamos que permanecesse em casa, bem agasalhado. Mas nem sempre ele nos atendia e acabava perambulando pelas ruas de Paim Filho em busca das réstias de sol nos dias de geada. Teimava em manter uma rotina que cada vez mais se mostrava difícil. Não dispensava seu baralho no Clube, nem suas idas à Igreja. E muito menos as visitas aos amigos e compadres. E a quem lhe perguntasse como estava, a resposta era invariavelmente a mesma: “estou bem!”.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

69 ANOS

Foto tirada em 1974, em nossa antiga casa, em Paim Filho
Se estivesse vivo, ele estaria completando hoje 69 anos!
Impossível esquecer esta data. 

terça-feira, 29 de março de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE    LII


                BEM...AINDA...
                                                              Almoço de Natal  2007



As festas de final de ano, em 2007, foram como as de antigamente. No Natal reunimos a família, em Paim. O dia primeiro de Janeiro eu passei com a família da Neu, em Bela Vista. O pai continuava muito bem. Ele parecia ter voltado à sua rotina de sempre. Em que pese seu aspecto envelhecido e sua magreza, já não lembrava aquele homem tão doente do Natal de 2006. E estava feliz, assim como todos nós. Durante o almoço natalino fizemos o tradicional “amigo secreto” e trocamos presentes, entre apertados abraços. Mas não havia maior presente do que tê-lo ali, vivo, e com a saúde relativamente estabilizada. No meio do ano havíamos perdido a vó Eli e o tio Meca, em Nova Prata, com diferença de poucos dias. Com exceção do pai, estivemos todos lá para os velórios, onde também reencontramos todos os familiares pratenses. Em meio à tristeza pelas perdas, perguntavam sobre o pai e eu sentia uma satisfação enorme ao informar de sua boa evolução. Evidente que todo mundo mantinha os pés no chão com relação ao seu caso. Todos sabíamos que tratava-se de uma frágil situação de estabilidade e que a doença ainda estava presente em seu fígado, podendo manifestar-se com maior ou menor intensidade a cada pouco tempo. Ninguém duvidava de que seria difícil ele escapar dessa. Mas era preciso curtir aquele bom momento, torcendo para que durasse o máximo possível. E até acreditar no milagre, por que não?

Eu continuava acompanhando minuciosamente os exames de sangue. As enzimas hepáticas vinham se mantendo próximo do normal. O Tempo de Protrombina oscilava entre 50 e 60% - um índice bem razoável para as condições do fígado dele. E até o marcador de tumores “alfafetoproteína” estava se mantendo estável. Eu informava o Dr. Sílvio a cada resultado e ele acompanhava, me devolvendo um “parecer” à distância. Ficava satisfeito com as informações, mas em nenhum momento eu senti dele alguma expectativa demasiado otimista com relação ao Bernardo (ou “seu Egídio”, para ele). A experiência lhe dizia que a cura não seria possível naquele fígado tão avariado. Sem a substituição do órgão, já descartada pelos motivos mencionados lá atrás, todo tratamento seria paliativo e a aposta era apenas prá saber por quanto tempo as funções hepáticas deficientes o manteriam vivo.

Em que pese a tranqüilidade, era preciso continuar o tratamento e as viagens a Erechim.

E então, já no primeiro exame de 2008, em Fevereiro, tivemos uma pista de que a doença iria começar a se agravar. O exame de ultrassom revelava que os dois nódulos haviam crescido com maior velocidade. Um deles já ultrapassava, pela primeira vez, os 2cm. E aquele que até então parecia ter sido eliminado voltara a ficar ativo e também se aproximava desse tamanho. Não bastasse isso, havia surgido um terceiro, bem pequeno, de menos de 1 cm. Foram necessárias três alcoolizações, desta vez. Mas o pai reagiu bem e o tratamento aconteceu da maneira habitual. Fui buscá-lo, como de praxe, e deixei ele a mãe em Paim. A mãe reclamava de muito cansaço após três dias de hospital, tendo dormido novamente no chão por mais duas noites. Mas praticamente nada fora diferente das vezes anteriores.

A não ser por um detalhe.

O laudo do ultrassom não havia sido entregue no hospital, pois não ficara pronto. No meio da semana, um amigo foi até o laboratório, em Erechim, e retirou os exames.

O pai não era bobo. Meio século de experiência no ramo da saúde lhe davam a condição de interpretar empiricamente um laudo médico. No Sábado, quando cheguei para mais uma visita, ele buscou a pasta com os documentos do hospital e disse “não gostei nada dos exames”. Tomei logo de suas mãos o laudo da ultrassonografia e fui direto à descrição do radiologista. E aí descobri a razão de sua preocupação. Estava clara a informação sobre o crescimento dos nódulos e o surgimento do terceiro. A imagem realmente preocupava. Era possível observar uma área maior do seu fígado comprometida pelas alcoolizações. Três, desta vez. Nenhuma surpresa prá mim, mas um choque para ele, que vinha tão otimista em razão de sua boa condição nos últimos meses. Prá mim, naquele momento, ficou evidente que ele sofrera um revés em seu otimismo, o que não podia acontecer. O alto astral era imprescindível para que ele continuasse bem, para que seu fígado continuasse funcionando, para que seu organismo reunisse forças para continuar lutando contra o inimigo. Mas não havia jeito de dizer o contrário. Lembro que parei de ler, por alguns instantes, escolhendo as palavras que lhe diria. Eu sabia que mais do que o parecer do laudo o que eu falasse seria decisivo para seu astral. Lembro até hoje, palavra por palavra o que eu lhe disse naquele momento. “Pai – falei – realmente esse laudo me deixa um pouco preocupado, porque surgiu um outro nódulo, o que a gente não esperava. No entanto, as alcoolizações vem funcionando muito bem. É possível, muito provável até, que esse tratamento, com três alcoolizações e uma quantia maior de álcool instilada no teu fígado possam matar um número maior de células vivas. Isso é verdade. Mas como o teu fígado se consolidou num tamanho razoável, pode muito bem absorver mais esse impacto. Não vejo tanto problema nisso, não. Acho que é só dar um tempo um pouco maior para a recuperação dele...” Se ele acreditou nisso ou não, eu não sei, mas acenou com a cabeça como que concordando com o que eu dizia. Logo em seguida mudamos de assunto e ele pareceu já um pouco menos preocupado. Eu não. Mais abaixo no texto do médico havia um item que começava a me preocupar ainda mais. Dizia “...varizes esofágicas de moderado calibre...”



terça-feira, 8 de março de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE    LI 


                                            
O ANO BOM




2007 representou mesmo o melhor período de seu estado de saúde. A cada 60 ou 90 dias voltávamos a Erechim para sequência do tratamento e ficávamos felizes com as tomografias realizadas, pois os nódulos permaneciam sob controle. Houve momentos em que os exames se mostraram tão positivos que parecia mesmo que o pai havia entrado num período de recuperação ascendente. Foi várias vezes a Bento Gonçalves com a mãe e outras tantas esteve em nossa casa, para almoçar e conviver conosco, sempre junto com o Nando e sua família. Claro que algumas de suas internações foram mais complicadas que outras, demandando tempos de recuperação um pouco maiores, mas não se repetiu a principal complicação, que era a formação de excesso de líquido no abdômen. Por outro lado, um outro problema passou a me preocupar. A cada exame tomográfico uma nota destoava dos resultados positivos. Dentre as descrições de normalidade dos demais exames, vinha sempre uma observação: “varizes esofágicas” . Eu não dava muita importância a esse detalhe, mas o Dr. Paulo a certa altura viria a me alertar sobre a possibilidade de hemorragias internas em razão disso. Era uma das causas mais freqüentes de mortes entre os pacientes cirróticos. Mas até então eu pouco considerava a questão da cirrose no pai. Nosso foco eram os tumores. O alerta do Dr. Paulo, no entanto, me deixou um tanto preocupado. Soava como se ele quisesse me preparar para um possível problema futuro. Ele nunca tinha apresentando qualquer indício de sangramento no seu aparelho digestivo, por sorte. Mas decerto a experiência do médico lhe apontava para essa possibilidade. E então, a cada novo exame, por ocasião dos procedimentos de controle, passou-se a realizar também endoscopias.


Com o líquido abdominal sob controle, as funções do fígado relativamente bem preservadas, e nenhuma outra complicação aparente, o pai passou a comportar-se quase como se não estivesse doente. Em que pese o vigor físico ter ficado definitivamente para trás, a vida quase voltou ao normal, para nossa alegria. Nem pensávamos tanto que ele estava em uma sobrevida. Era como se de repente ele tivesse tão somente envelhecido e ficado mais fraco. E como mudara o seu aspecto. Dois anos antes, aos 63, era aquele “jovem sexagenário” forte, cheio de vida, alegre e brincalhão e agora um “ancião” de 65 anos, arqueado, magro e enfraquecido pela doença. Mas isso não lhe tirava o bom-humor e a simpatia. As pessoas sentiam prazer em cumprimentá-lo e ver que apesar de tão grave doença ele aparentava tranqüilidade e parecia estar vencendo o inimigo. E quantos amigos lhe visitaram. Pessoas que há muito tempo não lhe viam fizeram questão de uma visita. Recebeu amigos de infância, amigos do Paraná, de Santa Catarina, de Porto Alegre. Muitos deles incrédulos com a notícia de sua doença. Ficavam chocados com sua aparência envelhecida, mas contaminavam-se com seu otimismo e seu bom-humor. Também foram sentidas algumas ausências. Alguns amigos, daqueles que diziam que o pai estava em sua lista de melhores amigos, não o visitaram em momento algum. Talvez tivessem suas razões, talvez não se sentissem bem vendo o pai daquele jeito. Mas ale acusou a ausência desses amigos. Ainda bem que foram poucos. A imensa maioria de seus amigos mais chegados e até de outros nem tanto assim, foram até a casa dele para prestar solidariedade, para ver como ele estava, para perguntar se precisava de algo. E isso bastava para deixá-lo satisfeito e ainda mais contente.                             O pai em foto de 1977 

O ano de 2007 transcorreu assim. Ele trabalhou no plantão da farmácia, jogou muito baralho no Clube com os amigos, visitou seus compadres, freqüentou a missa, foi à Romaria de N.Sa. de Caravággio. Comemoramos com ele a Páscoa, seu aniversário em 25 de Abril, o meu aniversário em Maio, o Natal... Foi um ano muito bom. Foi o ano em que quase esquecemos que ele estava doente. Quase.                     


                                                                                                                                                                                       

***

sábado, 19 de fevereiro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE     L




O MELHOR PERÍODO






Controlado o problema do excesso de líquido abdominal e a infiltração no pulmão, muito à base de uma cavalar dose de diuréticos, a doença do pai entraria numa fase de estabilização que nos deixava muito esperançosos. O ano de 2007 inteiro seria de boas notícias. Ele havia recuperado um pouco do vigor físico, ganhara alguns quilos e o fígado parecia, de fato, estar compensando muito bem as agressões do tratamento. A insuficiência hepática persistia, claro, já que o órgão conseguira regenerar-se a um tamanho aproximado de 70% do normal, mas dava para mantê-lo vivo e com as funções relativamente bem preservadas. Ao longo do ano, ele e a mãe fizeram várias viagens a Bento Gonçalves, onde ficavam por 15 a 20 dias na casa da Mili, recebendo todos os “paparicos” possíveis, o que lhe fazia muito bem. Quase sempre no retorno dessas viagens marcávamos nova consulta em Erechim e realizava-se os procedimentos de controle. Quando em Paim, o pai tentava seguir um pouco de sua antiga rotina. Debilitado ou não, mantinha-se no balcão da farmácia e desempenhava ainda aquela velha função de consultor para os pacientes, acostumados a ouvir uma opinião sua antes de se dirigirem ao médico, como ocorrera ao longo dos 50 anos de farmácia. Não dispensava a missa e embora sua voz não tivesse mais o vigor de antes, tentava acompanhar os cantos do coral de que fizera parte até 2005, mesmo que de sua boca nada mais saísse do que roucos balbucios. As festas nas capelas, de que tanto gostava, não tinham mais o colorido de antes. Impedido de sequer tocar em uma gota de álcool, era uma tortura ver os amigos desgustarem generosos nacos de vinho tinto e sentir o aroma da uva desprendendo-se dos copos. Os almoços passaram a ser regados apenas com refrigerante. Ora, se para ele o melhor da festa era a degustação da bebida dos deuses junto aos amigos, que graça haveria agora nas festas de colônia de Paim Filho? E assim esse prazer foi deixado de lado. Compensou-se com reuniões de família mais freqüentes. Os churrascos de domingo na casa do pai se tornaram obrigação numa freqüência muito maior do que antes. Se até 2005 dividíamos os almoços no meu sogro e no pai a cada 15 dias, agora a proporção passara de 3 para 1. E mesmo nesse “1” em que almoçávamos em Bela Vista, dávamos um jeito de passar por Paim para ver como ele estava.

Mas 2007 foi um ano bom. Nos fez esquecer um pouco do drama de sua doença e nos fez acreditar ainda mais numa sobrevida maior.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLIX


COMPLICANDO...

Nos dias seguintes ao retorno a Paim Filho, o pai começou a apresentar um quadro um pouco diferente do habitual. Sempre após os procedimentos de alcoolização havia um ou outro probleminha, que se estabilizava aos poucos, em alguns dias. Desta vez, no entanto, a produção de líquido no abdômen não cessou. Nem mesmo com a prescrição médica de aumento da dose de diuréticos. O quadro agravou-se quando o líquido começou a invadir um dos pulmões, prejudicando a respiração. Assim, fui surpreendido numa manhã com um telefonema da Jussane, indicando que o pai estava sendo levado às pressas para Erechim. No oxigênio. Havia se acumulado tanto líquido que o pulmão direito estava totalmente cheio, não dando mais conta de oxigenar o sangue dele. Era um quadro grave, que necessitava de uma urgente intervenção médica. Em situações normais, o acúmulo de líquido nos pulmões pode ser resolvido com a simples introdução de uma agulha através das costas, mas a situação de fato requeria um tratamento mais urgente e incisivo, razão pela qual fora necessário conduzi-lo novamente ao Hospital de Caridade.

Novamente pedi licença aos colegas e deixei o Banco mais cedo, rumando para Erexim. Na passagem por Paim Filho, busquei a mãe, que foi comigo, já preparada com pertences prevendo uma internação mais prolongada do pai.

Quando chegamos ao hospital já o encontramos alojado no quarto, sem oxigênio, respirando normalmente. O líquido fora drenado e seus pulmões estavam funcionando bem. Havia uma medicação sendo aplicada junto com o soro e ele estava acordado. Uma enfermeira media a pressão sangüínea e a temperatura e indicava estar tudo bem. Indaguei pelo médico, a fim de saber sobre o quadro dele. O Dr Paulo já havia passado e prescrito a medicação, mas a enfermeira indicava que eu falasse com o pneumologista que o havia recebido no hospital e conduzido os procedimentos de drenagem do líquido pulmonar. Encontrei-o no posto médico da ala, apresentei-me e ele começou a explicar o que havia ocorrido:

“Na verdade,- disse -os procedimentos realizados no fígado do seu pai acabam por causar uma espécie de paralisia nas funções do órgão. É uma reação normal, que pode durar de algumas horas a alguns dias. É o que se costuma chamar de descompensação da cirrose. A formação de líquido abdominal, a chamada ascite, é indicativo dessa descompensação, num quadro de insuficiência hepática como a do Seu Bernardo. No momento, retiramos todo o líquido e ele está bem. O problema é que observamos que imediatamente após a retirada, o pulmão voltou a apresentar líquido, o que mostra que persiste ainda a causa. Vai ser necessário que ele fique em observação e seja acompanhado de perto. Vamos ver se a produção de líquido estabiliza ou ao menos deixa de penetrar no pulmão...”

“Mas então, Doutor, - perguntei preocupado – esse quadro pode se estender?...”

“Pode. Infelizmente há casos em que a formação de líquido não cessa mais...”

“Mas o que fazer, se for o caso?”

“Bem, - disse ele – existem alguns procedimentos para aliviar o sofrimento dos pacientes. Um deles é a injeção de uma substância diretamente na pleura, literalmente lacrando o espaço existente entre as membranas e impedindo a passagem do líquido do abdômen para os alvéolos pulmonares. Só que isso provoca certo sofrimento no ato de respirar... Outra solução é a implantação de uma válvula externa, que é acionada toda vez que o paciente sente que existe líquido no pulmão. A pressão exercida faz com que o líquido retorne ao abdômen...”

Eram procedimentos paliativos, aplicados em pacientes com pouco tempo de vida.

Recusei-me a aceitar isso. Não era hora ainda. Naquele momento eu não admitia que meu pai pudesse morrer tão logo. Não era possível. Ele vinha tão bem, se recuperando, os nódulos controlados... Não, não era hora de pensar em procedimentos tão radicais. No meu íntimo, eu ainda acreditava numa sobrevida mais longa, acreditava que pudéssemos eliminar os nódulos, que o fígado dele ainda tinha possibilidade de continuar sua regeneração e aliviar a insuficiência hepática. Pensava no surgimento de alguma alternativa – células-tronco, ou sei lá o quê - que pudesse curá-lo.

E voltou aquele nó na garganta, aquela angústia que me acompanhava desde a descoberta de sua doença.

“Não, Doutor – disse eu de repente, - não vamos fazer isso. Ainda não. Vamos deixar esse procedimento para quando não houver mais nenhuma possibilidade de recuperação. Neste momento não. Eu peço que o Sr. o acompanhe, medique, adote os procedimentos necessários, mas nós queremos tentar ainda recuperá-lo. Em casa. Quando for possível, libere o pai. Nós o levaremos e cuidaremos dele em casa, daremos a medicação certinha...Tenho certeza que ele ainda vai se recuperar...”

Acho que o pneumologista se sensibilizou com aquela determinação do filho do seu paciente e concordou com a idéia.

Assim, o pai permaneceu no hospital por mais dois dias. No Sábado, pela manhã, eu estava de volta para buscá-lo. Ele saiu caminhando. E bem. O líquido diminuira bastante e o Dr. Paulo nos falou que bastaria aumentar um pouco a dose de diuréticos para estabilizar de vez. A mãe ficou as duas noites com o pai. Dormiu no chão, sobre um colchão improvisado com um cobertor. Mas havia valido a pena. Na saída, ainda no corredor, deparei-me com o pneumologista. Ao cumprimentá-lo, ouvi dele: “É, você tinha razão...Ainda dá prá controlar.”

Ao meio-dia estávamos em Paim. Um longo abraço, um beijo na face dos dois e aquele constrangedor “obrigado, filho”... (Pai, nem por toda a eternidade eu conseguiria compensar o que vocês fizeram por mim).
Voltei para São José do Ouro sem aceitar o convite de almoço da mãe. Estavam muito cansados. E o pai precisava repousar. Apenas pedi que me mantivessem informado do estado dele. Se preciso fosse, eu voltaria imediatamente. 































sábado, 15 de janeiro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLVIII




A SEGUNDA ALCOOLIZAÇÃO





A minha formatura em Passo Fundo não teve a presença do pai, nem da mãe. Nem de nenhum dos meus irmãos. Eram tempos difíceis. Nem eu estava em condições de promover alguma festa diferente, nem eles de gastar qualquer coisa naquele momento. E o pai, obviamente, não contava com saúde suficiente para se deslocar até lá e muito menos para ficar por horas em uma cerimônia de entrega de certificados. De modo que preferi que tudo ficasse apenas no jantar promovido pela turma, em que esteve presente apenas a minha esposa. O interessante é que me dei conta, recentemente, que nas duas formaturas que tive na vida não pude contar com os familiares, senão apenas com a Neu. Em 1986 eu colei grau na antiga FAPES, de Erexim, fui orador da turma. Apenas a Neu estava no anfiteatro para testemunhar e me ver vestido de toga. Havíamos casado fazia 2 meses. Eu havia pago toda a minha faculdade com o salário mínimo que recebia na Prefeitura de Paim Filho. O pai não tinha condições de arcar com uma despesa como essa e eu entendia isso muito bem. Mesmo assim, não foram poucas as vezes em que me ajudou, adiantando valores para pagamento das mensalidades, que eu devolvia depois, sem nada de juros. Eles fizeram o que foi possível. Tinham quatro filhos, não só eu. E não deve ter sido fácil conviver com a incerteza quanto ao nosso futuro, pelas precárias condições financeiras da família. De qualquer forma, ao menos o filho mais velho começava a se encaminhar bem. Na época da formatura em Erexim, não me dei conta disso, mas hoje, confesso que sinto um certo vazio e uma sensação de frustração “retroativa” por não ter sido possível entregar uma rosa aos meus pais como nas tantas cerimônias de formatura para as quais tenho sido convidado, ter derramado lágrimas de felicidade junto deles, ter recebido um abraço dos dois, seguido de palavras de incentivo, ou ter subido ao microfone para dizer-lhes em público o quanto os adorava e o quanto lhes era grato pelo sacrifício que faziam para me encaminhar bem na vida.

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Na semana seguinte à minha formatura no MBA, tirei um dia de folga. Era hora de levar o pai novamente para Erexim. Internação, tomografia, medicação preparatória. Outra vez a alcoolização, nos mesmo nódulos, que teimaram em ficar ativos. O exame de alfafetoproteína fora cruelmente direto: o câncer estava vivo. Repetiu-se toda a rotina anterior, com o pai chegando ao quarto imóvel e totalmente debilitado. O fígado literalmente parava depois do procedimento. Era um choque naquele órgão sensível e as funções precisavam de um tempo para retomarem seu curso normal. Desta vez a mãe fizera questão de ir junto e passar a noite ou quanto mais tempo que fosse necessário com o pai no hospital. Relutamos, a princípio, entendendo que seria um sacrifício demasiado para ela e que um de nós acabaria dando um jeito de ficar com ele, mas não houve proposta que a fizesse mudar de idéia.

Depois que o pai já estava acomodado no leito, sedado e dormindo profundamente, retornei a São José do Ouro. Passando por Paim, cheguei na farmácia para informar que estava tudo bem e que ficaria aguardando a alta par buscá-lo, talvez no final da tarde do dia seguinte. Foi o que aconteceu. Por volta das 3 horas da tarde liguei para o hospital e estavam liberados. Imediatamente pedi licença aos colegas do Banco e saí mais cedo. Avisei a Neu e rumei de novo para Erexim, para encontrá-los no hospital.

O pai já parecia bem melhor. Debilitado, é verdade. Falava com uma voz fraquinha e pausada, como quem ainda sente os efeitos da medicação. Movia-se com dificuldade. Faltavam-lhe as forças para sair do carro, tínhamos que ajudá-lo. Era o fígado canalizando suas funções para recuperar o “estrago” do procedimento e reiniciar gradativamente seu trabalho de filtragem e processamento da energia para o corpo.

Os dias seguintes seriam decisivos. Ele precisava repousar, alimentar-se bem, e aguardar que o corpo fizesse sua parte.

Deixei-os na farmácia e voltei para casa, desta vez satisfeito e esperançoso de que os nódulos pudessem finalmente ter sido eliminados, que o procedimento tivesse um sucesso maior do que o primeiro.

Interessante era ver o pai sempre me dar um abraço antes de me deixar ir, dizendo um “muito obrigado” que me soava estranho, porque no meu íntimo ele não deveria jamais agradecer. Eu é que devia algo a ele. Para mim, o que eu estava fazendo nada mais era do que uma obrigação de filho – tal qual ele fizera com o pai dele nos derradeiros anos do nono beppi, que morreu em 1974. Mas não houve uma única vez, durante o seu calvário de três anos, em que ele não me agradecesse depois de cada viagem.