O FIM...
Não dormi direito naquela noite. Acho que ninguém da família dormiu. Fui vencido pelo cansaço e apaguei depois de um acesso de choro convulsivo que empapou o travesseiro antes de a Neu e as meninas irem dormir. Mas acordei várias vezes durante a noite, pensamento fixo no pai, sensação de que a qualquer momento poderíamos receber algum telefonema de Erechim. Por incrível que pareça eu ainda pretendia ir até o Banco para colocar alguns papéis em ordem e acompanhar de lá a situação do pai, mantendo contato telefônico com a Mili. Até hoje me culpo por isso. Talvez eu devesse ter ficado lá no Hospital de Caridade junto delas, dormisse ou não, acompanhando ele. Talvez ele sentisse a minha presença, que sempre lhe dera segurança. Talvez seu subconsciente, em seu corpo quase morto, clamasse por mim ao seu lado... Teimosamente, no entanto, o meu cérebro não conseguia compreender que naquele leito da CTI jazia um corpo já sem forças para reagir, caminhando rapidamente para o fim. Estranhamente, eu, que durante três anos busquei preparar a todos da família para a morte inevitável do pai, relutava agora em entender que tudo estava chegando ao fim. Restava-me ainda um fio de esperança de que ele voltasse uma vez mais para casa. Que se fosse para morrer, que morresse lá, na sua cidade natal, junto de seus amigos e familiares. Mas eu parecia não sentir que isso fosse acontecer agora. E ainda ficava imaginando como seria aquele Natal se o pai tivesse que ficar alguns dias no hospital. Como faríamos o “amigo-secreto” sendo que alguém teria que ficar cuidando dele no hospital? Iríamos mesmo comemorar o Natal sem o pai e a mãe presentes?
E foi assim que amanheceu aquele 23 de Dezembro de 2008.
Não era ainda 6:30h da manhã quando saltei da cama. Me vesti para ir trabalhar. Minha intenção era ficar no Banco até o meio-dia e depois voltar a Erexim, dependendo das notícias. Antes, porém, um telefonema para a Mili. Teria ele se recuperado durante a noite? Teria seu fígado reagido uma vez mais, com o soro e os litros de sangue administrados em sua veia?
Liguei.
- Mili, como está o pai?
- Ia te ligar agora mesmo. O médico acabou de sair da CTI e disse que ele está muito mal! Muito mal mesmo! Acho melhor vocês virem logo...
Caiu então a ficha. Era o fim. Liguei para o Nando e pedi que viessem até Sananduva. Eu os esperaria para irmos todos a Erechim. Liguei em seguida para a Rosane, minha gerente adjunta e informei que naquele dia eu não iria trabalhar. Meu pai passava mal.
Saímos pouco depois das 10 horas da manhã, já preparando o espírito para o que viria. Nem lembro quem foi comigo. Também não lembro se alguém foi com outro carro, acho que o Digo. Só sei que chegamos ao hospital faltando 10 minutos para o meio-dia. E rumamos imediatamente para a CTI, onde já estavam a mãe e a Mili.
Quando cheguei à ante-sala, onde elas haviam passado a noite, conversamos rapidamente. A Mili contou de um sonho que a mãe tivera naquela noite, em que o pai teria chegado até perto dela e dito algo como “desta vez eu vou...” E a mãe teria chorado muito. Contou alguns detalhes do que acontecera durante a noite no hospital, de como se haviam acomodado para tentar dormir.
E enquanto conversavam, pedi onde ficava o banheiro e me dirigi até lá.
Mal acabei de fechar a porta e ouvi um grito, seguido de batidas na porta do banheiro.
- Marco, Marco, venha rápido...ele está indo...!
Saí rapidamente do banheiro e corri até a CTI, abrindo caminho por entre as pessoas que se acotovelavam na fila aguardando para visitar familiares no corredor que antecede a grande sala. No caminho, cruzei com a mãe em desespero sendo amparada pela Mili. Fizeram-me sinal para que entrasse. Ao lado do leito estava o Digão, segurando a mão do pai e olhando para o visor onde uma linha reta e um apito contínuo indicavam que aquele coração já não pulsava. Embora eu ainda tivesse conseguido ver duas ou três batidas fracas serem registradas pelo eletrocardiógrafo. Eram exatamente 12 horas do dia 23 de Dezembro de 2008. Seu corpo, ainda mais amarelo, permanecia quente. Seus olhos, entreabertos. E a boca parecia sorrir, deixando a impressão de que morrera tranquilamente, sem sofrimento. Lembro que a única coisa que me ocorreu fazer naquele momento foi sussurrar em seu ouvido ...”vai tranqüilo, meu pai, vai tranqüilo...” E saí rapidamente da sala. Precisava avisar o mundo que acabara de falecer o meu maior amigo.
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