sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLVII




VIDA NORMAL DEPOIS DO HOSPITAL


O pai teve alta no dia seguinte. Já se sentia melhor, alimentou-se, recobrou as forças. Na saída de Erexim pediu para parar em uma banca de frutas. Queria pêssegos, fruta que gostava muito. Comprei uns quilos.

Chegamos em Paim por volta do meio-dia e a mãe o recebeu com um abraço. Rejeitei o convite prá almoçar, pois não via hora de chegar em São José do Ouro, rever a Neu e as meninas e descansar, recuperar o sono perdido na noite anterior.

Os dias que se seguiram foram de observação. Eu mantinha (tenho até hoje) todos os resultados dos exames que o pai fazia. Acompanhava atentamente a evolução dos índices que nos diziam da atividade do seu fígado. Ao longo de todo o período de sua doença, devo ter aprendido tanto sobre o sistema hepático que poderia escrever um tratado sobre o assunto. Cada exame era por mim analisado minuciosamente e depois remetido por e-mail ao Dr. Sílvio, que de Porto Alegre me dava seu parecer. Ele evoluía bem. Conforme o fígado se recompunha, os índices melhoravam. As principais enzimas produzidas pelo órgão evidenciavam a gradativa melhora, o que nos enchia de esperança, mesmo que agora tivéssemos que conviver com os novos nódulos que haviam surgido.

Claro que também o pai começava a nutrir uma expectativa mais positiva sobre o seu caso. Ao sentir-se melhor, pode retomar parte de sua rotina. Voltou a atender clientes na farmácia, ia diariamente ao Clube para jogar baralho com os amigos, freqüentava a missa. Até o seu fusquinha ele tentou dirigir, mas a pouca força não lhe permitia mais.

A mãe, por sua vez, parecia não entender que a doença o deixara assim tão debilitado e de certa forma passou a exigir que ele se comportasse como estivesse curado. O tratava assim. Talvez fosse o desejo profundo de ignorar a tragédia pessoal, criando em seu subconsciente um mundo novo, onde nada daquilo tivesse acontecido, como se tudo não tivesse mesmo passado de pesadelo,agora terminado. Cuidava muito bem dele, não se tenha dúvida. Não saia do seu lado, alimentava-o (até demais), prescrevia-lhe a medicação, cuidava de sua aparência. Mas exigia, ao mesmo tempo, que se comportasse como uma pessoa normal, o que evidentemente ele não mais conseguia. Mas talvez esse comportamento da mãe fosse exatamente uma forma de fugir daquela realidade cruel que se abatera sobre um casal que convivia há quase 50 anos cuidando-se mutuamente,dividindo alegrias e tristezas e cuja continuidade agora estava seriamente ameaçada por uma doença que se mostrava potencialmente fatal.

Durante cerca de 60 dias as coisas andaram bem. Deu até para eles viajarem para Bento Gonçalves e ficarem alguns dias visitando a Mili e o Digo.

Na volta da viagem, porém, era hora de voltarmos ao Hospital de Caridade e verificarmos o resultado da primeira alcoolização.

Os exames preliminares de sangue, antes de qualquer procedimento, apontaram uma elevação da concentração de “alfafetoproteína”. Significava que o câncer ainda estava ativo. Os nódulos teriam que ser novamente tratados. Vinha aí outra internação e a repetição do procedimento.















quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

INESQUECÍVEL !!!

23/12/2008  -   23/12/2010
DOIS ANOS DE SAUDADES...

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLVI




O SUCESSO DO PRIMEIRO PROCEDIMENTO




           O meu curso em Passo fundo caminhava para o final e já havíamos marcado a formatura para o final do ano. É claro que eu sonhava com a possibilidade de contar com a mãe e o pai na janta de formatura, mas sabia que seria muito difícil. E isso ficou ainda mais evidente quando a maca saiu da radiologia com o pai sobre ela em direção ao quarto, no primeiro piso do Hospital de Caridade. Ele estava acordado,porém sonolento. Aguardei que o colocassem na cama e depois me aproximei, tentando conversar com ele. Perguntei como estava, se havia sentido alguma dor, se precisava de algo. Balbuciou alguma coisa que não entendi direito e fechou os olhos, demonstrando estar fraco e debilitado. Deixei que dormisse. Conversaríamos depois. Enquanto isso eu precisava conversar com o Dr. Paulo e saber como fora o procedimento. Por sorte, encontrei ele ainda no hospital. Me explicou em detalhes como tudo havia sido feito. Por sorte o fígado do pai não era do tipo que sangrava com facilidade e dessa forma o principal temor do radiologista estava afastado. Com relação ao procedimento em si, tudo correra normalmente, com cerca de 10ml de álcool instilados em cada um dos nódulos. Não se usou de anestesia. Haviam dado para o pai um medicamento relaxante, de modo que a agulha lhe penetrara as entranhas com risco de que viesse a sentir muita dor. Mas não. Pelo jeito ele nada sentira no procedimento, já que, segundo o Dr. Paulo, teria ficado absolutamente tranqüilo durante todo o tempo. Agora era aguardar. Era preciso que ficasse imóvel e não levantasse da cama naquela noite, para que o movimento não induzisse a algum sangramento interno, que certamente se constituiria em uma situação de gravidade. Afora isso, só aguardar que recuperasse as forças. Voltaríamos para casa e retornaríamos em 60 dias, quando uma nova tomografia seria feita, a fim de verificar se o tratamento dera resultado. Seria essa nossa rotina a partir de então.

Por volta das 21 horas ele acordou. Eu já havia comido alguma coisa (sem dúvida, um pastel) na lanchonete do hospital e estava ao seu lado, lendo uma revista.

Conversamos, enfim.

- Como está se sentindo, pai?

- Bem -(a resposta de sempre) – só um pouco fraco...

- Alguma dor ?

- Nada. Não senti praticamente nada no procedimento, nem estou sentindo agora. Só estou me sentindo fraco...

“Que bom”, pensei, “pelo menos isso”. Já era um alento saber que ao menos não haveria muito sofrimento físico no tratamento.

Aproveitei e liguei para a mãe e para o Nando, que estavam ansiosos por notícias dele. Expliquei que tudo havia acontecido conforme o esperado. Passei-lhes as informações do Dr. Paulo e disse que estava mais tranqüilo. E esperançoso de que o tratamento funcionasse. Se assim fosse, talvez a sobrevida dele fosse maior que o esperado. Quem sabe? Senti que os dois ficaram também aliviados com a notícia.

Logo depois, percebi que o pai precisava descansar mais. Já passava de 22 horas. No quarto não havia outra cama. Só tinha uma cadeira de balanço, parecida com a da minha vó, com duas almofadas grandes. Era ali que eu deveria dormir naquela noite. E enquanto o pai caía novamente no sono, fiquei assistindo TV por mais umas duas horas. Era difícil dormir naquela cadeira. Eu não conseguia ajeitar meu corpo e recostar minha cabeça, de modo que o sono parecia impossível. Além disso, o entra-e-sai da enfermeira da noite não permitiria que eu dormisse, ao menos aquele sono profundo e reparador que seria necessário para estar em condições de dirigir de volta prá casa no dia seguinte.

Decidi então que iria dormir no carro, que estava no pátio do hospital, na parte de baixo, próxima ao parque.

Nem precisa dizer que o banco traseiro do Corsa era infinitamente mais confortável que a tal cadeira de balanço. Assim, num sono recortado por sobressaltos, passei aquela madrugada quente encolhido no pequeno espaço disponível, mas aliviado depois de ver que a primeira etapa do tratamento do pai havia sido cumprida.























sábado, 6 de novembro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLV


COMEÇA O LONGO TRATAMENTO


No dia em que levei o pai para a primeira sessão de tratamento dos nódulos, fui supreendido por uma situação inusitada.
Enquanto aguardávamos pacientemente na sala de espera da clínica onde atendia o Dr. Paulo, pude vê-lo fazer uma ligação para o radiologista que executaria o procedimento. Do outro lado da linha, o Dr. Aldo parecia lhe “cobrar” um índice de coagulação sanguínea superior a 70% para que tudo fosse feito com segurança. O fígado é um órgão gelatinoso, por onde passa todo o sangue do corpo. Por isso mesmo, qualquer perfuração nesse tecido pode desencadear uma hemorragia, com conseqüências imprevisíveis. Até então não sabíamos disso. Ao menos não com riqueza de detalhes.  Ninguém nos havia informado de haver risco no procedimento. Ao contrário, tanto os médicos de Porto Alegre quanto o próprio Dr. Paulo tratavam o assunto da alcoolização como algo rotineiro para os radiologistas.
Ouvi o Dr. Paulo responder ao interlocutor que “milagre só Jesus Cristo. Vai ter que ser assim mesmo...” – referia-se ao fato de o pai apresentar índice próximo de 50% no tempo de protrombina, aquele que mede a coagulação do sangue.
Terminada a ligação, o Dr. Paulo dirigiu-se a nós e iniciou uma conversa que no momento nos pareceu estranha:
- Bem – disse ele, num sorriso que parecia meio nervoso – todos somos adultos...quer dizer...ninguém é criança aqui...vocês sabem dos riscos...
- Riscos, Dr. Paulo? – perguntei, mostrando surpresa.
- Acontece o seguinte: trata-se de um procedimento invasivo. O fígado do Bernardo vai ser perfurado por uma agulha. Embora trate-se de um pequeno orifício, sempre existe uma possibilidade de ocorrer uma hemorragia. Normalmente sem maiores conseqüências. Mas o índice de coagulação dele está abaixo do mínimo necessário. De qualquer forma, vamos fazer assim: vamos iniciar uma transfusão de plasma, que deve elevar esse índice a níveis aceitáveis e logo em seguida o Dr. Aldo realiza o procedimento. E a gente torce para que dê tudo certo. Tudo bem?
- Ok, Paulo. Vamos encarar.
Depois de dizer isso, percebi que havia respondido pelo pai, que afinal era quem seria submetido ao procedimento e que iria correr o risco. Enquanto o Dr. Paulo se afastava para dar início na transfusão de plasma sanguíneo, voltei-me para o pai, que estava ao meu lado, cabisbaixo, fitando o horizonte que sua vista alcançava através da janela à nossa frente.
- Pai, ainda está em tempo... Se você tiver receio de correr esse risco e quiser desistir...a gente pensa melhor depois no que fazer.
- Não, filho – disse ele, com uma voz assustadoramente mansa e tranqüila – eu deixei tudo nas mãos de Deus. Desde o dia da cirurgia. Está tudo com Ele. O que tiver que ser será. Eu estou pronto...
Confesso que engoli a seco ao ouvir aquilo. E de alguma forma me senti envergonhado por fraquejar diante do risco que se desenhava, enquanto ele, que seria o personagem de tudo aquilo, demonstrava tamanha coragem no enfrentamento do que viria.
E assim o levaram. Fiquei em pé observando a maca quase desaparecer no longo corredor do Hospital de Caridade, enquanto um calafrio percorria minha espinha e aquele nó outra vez teimava em sufocar minha garganta. A coragem do pai me comovia. Era impressionante a forma como enfrentava tudo aquilo. Eu tentava me colocar no lugar dele, imaginando-me na mesma situação. E concluía que não estaria assim tão sereno. O que tinha o Bernardo de coragem tinha eu de covardia. Por certo antes de submeter-me a um tratamento desses eu antes faria um “gritedo” – armaria um barraco, faria um drama, lamentaria antecipadamente meu caminho sem volta para a morte... Dizem que diante de um iminente perigo de vida a gente arranja as forças necessárias para lutar. Pode ser. Mas o modo como o pai encarou o seu problema chamava, de fato, a atenção de toda a família. Não se ouviu um único “ai” ao longo dos três anos de sofrimento. Nem mesmo quando as agulhas da alcoolização lhe perfuravam o lado, penetrando suas entranhas para atingir os nódulos dentro do fígado, sem anestesia. Era assim o seu tratamento. Davam-lhe algum calmante e depois, guiado pelo aparelho de ultrassom, o radiologista introduzia uma longa agulha em seu abdômen, atingia o fígado e lá, dentro do nódulo canceroso, instilava de 5 a 10ml de álcool. Um álcool medicinal, tóxico para as células malignas. E para as outras ao redor. Assim, o nódulo estabilizava, deixando de expandir-se. Às vezes uma única dose bastava. Outras vezes eram necessários dois, três procedimentos idênticos no mesmo nódulo, em espaços de 60 dias. E ele agüentava tudo. A dor física. A dor moral de saber que lutava contra um inimigo que se mostrava naquele momento absolutamente invencível. A dor de ter consciência de que caminhava lentamente para a morte. A dor de ter que disfarçar perante os familiares todos os seus temores, fazendo crer que não tinha consciência de que iria morrer daquilo. Se tinha esperança na cura? Óbvio que sim. Não acredito que qualquer doente terminal, mediante o tratamento que lhe for ministrado não deposite fé na possibilidade do milagre, da reversão do quadro. É da natureza humana. E fé o pai tinha de sobra. Mas, religioso como era, por certo conversava muito com Deus em seus momentos de solidão, quando devia lhe implorar pela cura. Ou por mais tempo de vida, como recompensa pela bondade e religiosidade com que vivera até então.

O pai, naquele momento, tinha dois pequenos nódulos. E o sucesso do tratamento era uma incógnita. O Dr. Aldo foi claro na conversa que tive com ele depois, enquanto conduziam o pai para um quarto. Há casos em que os nódulos não regridem, mesmo com esse agressivo tratamento. Às vezes alguns nódulos hepáticos são tão resistentes que outros procedimentos são requeridos para controle. Mas era cedo prá tirar conclusões. Se não desse certo, pensar-se-ia em outro tipo de tratamento. Mas foi enfático: tudo era paliativo. Ganharíamos tempo. Retardaríamos um inevitável desfecho em que seu fígado não mais daria conta de brigar contra o invasor. Devíamos nos preparar. “Eu já sabia disso, Doutor” – pensei comigo.









sábado, 23 de outubro de 2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

parte XLIV


A CAUSA...



Mas a farmácia era seu ganha-pão. A aposentadoria havia sido uma grande decepção. Durante anos a fio, com muito sacrifício, ele havia recolhido valores mensais equivalentes a 7 salários-mínimos, pensando em aposentar-se com uma renda que lhe permitisse sustento e dignidade nos últimos anos de vida, mas a crueldade de nosso sistema previdenciário acabou lhe deixando com apenas 2,8 salários. Isso naquela época. A defasagem ao longo do tempo transformara seu soldo em pouco mais de um salário e meio. Some-se a isso o pagamento do plano de saúde, de mais de r$ 350,00 mensais e pode-se deduzir que não havia meio de ele parar de trabalhar, mesmo após os 60 anos. Estava indefinidamente adiado o seu sonho de descansar e ver-se livre do stress de administrar a farmácia. Foi obrigado a resignar-se e adiar seus planos. Era financeiramente inviável parar naquele momento. Mas era algo doloroso para quem sentia indescritível prazer em simplesmente viver a vida, estar com os amigos, desfrutar do convívio familiar. Participar de um churrasco entre amigos era para ele momento de máxima felicidade. Por isso mesmo acabou convencendo a mãe, um tanto “caseira” e arredia quando se tratava de sair de frente da TV, em acompanhá-lo nas festas de capela, nos almoços com amigos no interior, nos eventos do Rotary. E acabou que isso se transformou em uma válvula de escape, que aliviava-lhe a sensação de frustração que sentia por ter que estender sabe-se lá por quantos anos ainda a sua atuação junto à farmácia, mesmo depois de aposentado. Seria diferente se não fosse o stress gerado pelo problema do bioquímico responsável. Algumas multas aplicadas pelo Conselho Regional de Farmácia lhe tiravam o sono. Ele era um “cumpridor da lei”. Sofria com qualquer situação que o colocasse fora disso. De certa forma, não estar conseguindo adequar-se à exigência legal dava-lhe uma sensação de ser um criminoso. Angustiava-se de verdade com isso. Não fosse assim e tenho certeza de que ele continuaria feliz no balcão da sua farmácia até o fim da vida. Os problemas financeiros também existiam, lógico, mas isso era algo que podia ser resolvido com algumas medidas simples, alguns controles, algumas mudanças que ajudávamos a propor. Lembro das tantas conversas que tivemos sobre o assunto e dos inúmeros conselhos que eu lhe dava com relação às finanças da empresa, com base na minha experiência no Banco. O problema, de fato, não era esse.
De alguma forma, no entanto, ele havia mudado seus hábitos após a aposentadoria. Já não ficava na farmácia em tempo integral, deixando para a Jussane as principais tarefas. A mãe ajudava no atendimento, a Jussane controlava o estoque. Com ele ficavam os controles das contas e os pedidos de mercadoria. Por algum tempo. Logo também isso passaria a ser tarefa da Jussane.
E assim o seu horário na farmácia foi ficando cada vez menor.
Estava criado um grande problema.
Antes das 10 horas da manhã ele pegava o seu fusquinha e ia para os Bancos. Depois descia até o bar do Santana. E ali começava a “via sacra”. Um aperitivo com os amigos ali, outro no bar do Vineto, mais um no Zé Galon, terminando no Clube. Sem se dar conta, ele começava a abusar do consumo de álcool. Diariamente. E esse era o maior problema. Ele não ingeria grandes quantidades de bebida alcoólica, mas o fazia com freqüência. Diariamente. Há muitos anos. Não chegou a se tornar um alcoólatra (talvez por não ter dado tempo), mas seu fígado foi sendo aos poucos intoxicado. Daí à formação de uma cirrose foi um passo. Doença silenciosa essa. Nenhum sintoma, nenhuma dor, nenhum mal-estar. E de repente você descobre que seu fígado está doente. Pior para o pai, que além de tudo ainda foi extremamente azarado. Digo isso porque conheci muita gente que desenvolveu cirrose e após descobrir o problema simplesmente parou com a bebida e viveu até os 80-90-100 anos. Para o Bernardo foi diferente: talvez por alguma predisposição genética a cirrose desencadeou logo um tumor. De fígado. Um dos mais mortais de todos os tumores humanos. Que lição isso foi para todos nós, da família. Não que tenhamos nos tornado abstêmios em função disso, mas a verdade é que reduzimos drasticamente o consumo de bebida alcoólica. Porque descobrimos, pela mais cruel das vias, que todos nós temos um fígado. E que esse órgão é tão vital quanto o coração. E que quando para de funcionar, morremos.

(Se a juventude de hoje, que vejo consumir cerveja como se fosse água, que vejo emendar um porre no outro durante os finais de semana e invariavelmente em todas as festas - se essa juventude tivesse conhecimento do mal que estão causando ao seu fígado e das consequências de perder definitivamente esse órgão vital, certamente pensaria em rever seus conceitos...)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLIII

STRESS...


De alguma forma, por ironia do destino, era apenas agora, por força do enfrentamento de tão grave doença, que ele finalmente teria direito a um descanso de “aposentado”. De fato, desde 1995 quando se aposentara por tempo de contribuição ao INSS, ele vinha se queixando de que estava cansado do trabalho na farmácia. Não que fosse uma atividade cansativa. Ao contrário, atender no balcão lhe era prazeiroso. Lá ele tinha contato com pessoas. Tinha uma rotina com horários que ele próprio determinava e dentro dos quais se organizava de forma a mesclar o trabalho com o lazer. Além do fato de que tinha mesmo prazer em atuar numa atividade ligada à saúde, onde podia exercitar aquilo que mais gostava: ajudar pessoas. Mas o que estava lhe deixando desgostoso e estressado era a dificuldade que enfrentava no cumprimento à legislação cada vez mais rigorosa com relação às farmácias. Antigamente não era assim. De certa forma , lhe incomodava o fato de ter sido funcionário de dois patrões e tê-los visto prosperar naquele ramo, praticamente sem dissabores dessa ordem. Quando, após um hercúleo sacrifício, conseguiu finalmente tornar-se dono de seu próprio negócio (ou de metade dele) deparava-se agora com problemas que não foram enfrentados por João Lacerda e Moacir Guimarães, os antigos patrões. A concorrência, que antes não havia, agora tirava boa parte do faturamento e reduzia suas possibilidades de ter uma situação financeira estabilizada. Não bastasse isso, havia alguns anos que a falta de bioquímicos no mercado era a pedra no sapato dos donos de farmácia das pequenas cidades do interior. E a cada pouco tempo uma nova lei aumentava ainda mais as exigências. Seguidamente referia-se ao tempo em que era apenas um balconista na antiga farmácia Lacerda e lembrava que o seu João era o próprio responsável legal pelo estabelecimento. Naqueles tempos, bioquímico era profissional raro no mercado. Tanto mais naqueles cantinhos escondidos do Rio Grande, isolados do mundo por estradas de chão que causariam arrepios nos fabricantes de automóveis. A exigência do bioquímico veio bem depois. Mesmo no tempo do Moacir, um farmacêutico podia assinar como responsável pelo estabelecimento sem precisar estar presente o tempo todo. Bastava que uma vez ao mês, por exemplo, passasse por lá para assinar o livro de ocorrências. Ganhava para isso, já era uma despesa a mais. Mas não havia pressão alguma da entidade de classe ou do governo cobrando a atuação do profissional. Nos últimos anos, no entanto, a lei recrudecera. E a exigência de um farmacêutico em tempo integral no horário de atendimento foi a gota d’água. O Conselho Regional de Farmácia, na defesa de seus interesses, pressionava o governo, que criava e regulamentava leis. Mas não havia ainda profissionais suficientes para atender ao mercado. Durante vários anos o pai contratava um bioquímico e pensava ter resolvido o problema. Mas logo ali adiante o perdia para um centro maior e recomeçava o stress, que se traduzia em sucessivas notificações e multas aplicadas pelo CRF. Essa situação lhe causava grande desconforto. Vivia nervoso, irritado. E só relaxava mesmo quando saia para se encontrar com os amigos, jogar seu baralhinho e bebericar aperitivos. Não foram poucas as vezes em que pediu minha ajuda para tentar encontrar um profissional que se dispusesse a ser o responsável técnico da Farmácia Lacerda e representasse o fim daquele tormento. E várias vezes eu consegui isso. Mas era sempre por pouco tempo. Logo estávamos nós novamente na “estaca-zero”. E ele estava cada vez mais intolerante com essa situação. Já não demonstrava um mínimo de paciência para lidar com isso e logo “chutava o balde”. Notava-se claramente que já não agüentava mais. E assim os períodos em que ficava na farmácia foram se tornando cada vez mais curtos, de modo que a mãe e a Jussane passaram a ser, de fato, as atendentes. Sua inconformidade passou a servir de pretexto para ausentar-se. Longe da empresa, acho que conseguia relaxar e sentia-se um pouco mais feliz.

sábado, 11 de setembro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLII

O TRATAMENTO: O OUTRO CALVÁRIO


No sábado, após o término do meu curso, viajei de Passo Fundo a Erexim para buscar o pai e o Nando, que estava com ele. Ele estava bem. Mas era preciso iniciar o tratamento como forma de tentar eliminar os dois nódulos que haviam aparecido no que restava do seu fígado.
Numa conversa reservada com o Dr. Paulo, ouvi dele que o tratamento mais viável seria o que se chama de “alcoolização” dos nódulos. O procedimento consiste em se introduzir uma agulha comprida no abdômen, guiada por ultrassom, penetrando o fígado e atingindo diretamente cada um dos nódulos. Dentro do nódulo seriam instilados de 3 a 10 ml de um tipo de álcool especial (100%), que teria o poder de eliminar as células cancerosas. Era o que se poderia fazer no momento. Havia outras alternativas, como uma tal de “embolização” que consistia em injetar um tipo de espuma sintética diretamente nas artérias que alimentam os tumores, o que interromperia o fluxo de sangue, levando à deterioração do tumor. Mas isso só se fazia em Porto Alegre e era necessário o preenchimento de alguns requisitos que o pai não reunia no momento. Ficaria como uma “carta na manga”, para o caso de ele não responder bem ao tratamento com alcoolização. A boa notícia é que os nódulos poderiam ser controlados indefinidamente. Com um pouco de sorte, poderia ser possível eliminá-los com esse procedimento. A má notícia é que se tratava de um simples “paliativo”. A alcoolização é um procedimento que se usa para controle dos nódulos nos pacientes que aguardam por um transplante. Toda vez que o álcool fosse injetado nos nódulos, além das células tumorais, acabariam atingidas também células sadias, que aos poucos iriam diminuindo ainda mais a capacidade de filtragem do fígado, até um ponto em que não mais seria suficiente para mantê-lo vivo.
Obviamente não passei tudo isso para o pai. Ao contrário, mesmo abatido ao saber que praticamente não havia como curá-lo, senão apenas estender indefinidamente sua sobrevida, procurei elevar o seu astral, passando a impressão de que o tratamento seria suficiente para estender por muitos anos as sua vida, mesmo que debilitada. Deixei que imaginasse ser a sua salvação, não me importando se depois tivesse que informar-lhe que não seria um único procedimento, que seria o início de muitas viagens a Erexim a partir de então . E aí ele esboçou um sorriso, como se fosse o que queria ouvir naquele momento. Antes de tudo, ele amava a vida. Amava a família, sua cidade, seus amigos. O que ele desejava era mesmo estender o quanto fosse possível aquela convivência, curtir ainda mais os relacionamentos construídos ao longo de uma existência permeada de atitudes pró-ativas, de bondade, de bom –humor, de carinho com a família.
E a família foi informada de que o tratamento seria assim. De que era um paliativo. De que não havia chance de cura, mas também de que a sobrevida poderia ser longa, se a sorte nos acompanhasse. Não havia escolha, senão cumprir com a indicação médica e torcer para que Deus interferisse e, quem sabe, fizesse com que ele ficasse conosco por um longo tempo, ainda.
Marcamos com o Dr. Paulo a data da primeira alcoolização. Seria na semana seguinte. Ele deveria baixar na quarta-feira para exames e preparação. Na quinta-feira o Dr. Aldo, o radiologista, deslocava-se de Passo Fundo a Erexim e realizava os procedimentos. O pai necessitaria de pelo menos mais um dia de internação, sendo liberado na sexta-feira ou no Sábado.
Mal sabíamos todos que seria o início de um novo calvário.

domingo, 29 de agosto de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XLI

BALDE DE ÁGUA FRIA

Nos conformamos com o veredito da equipe de transplantes, entendendo as dificuldades que teríamos se tentássemos incluir o pai na fila. Era hora de pensarmos no acompanhamento de sua evolução e aguardar o surgimento de alguma alternativa. Até em células-tronco nós pensamos. Havia notícias à época, de avançados estudos, inclusive no Brasil, indicando que as experiências mostravam-se muito positivas nesse campo. Não custava sonhar.
*******
No retorno a Paim Filho, imediatamente buscamos marcar a primeira consulta com o Dr. Paulo Cavazzola, para avaliação do estado do fígado do pai e orientações. Marcou-se uma visita ao consultório, ainda naquela semana. O pai realizaria diversos exames de sangue e uma avaliação geral de seu estado de saúde.
Enquanto isso, eu continuava meu curso em Passo Fundo. Estava indo bem. As notas que eu vinha obtendo nas provas refletiam meu estado de ânimo no momento . A expectativa, quase convicção, de que o pai iria superar a doença, me levava a obter bom desempenho naquele MBA. As notícias sobre ele vinham sendo tão boas que nos faziam, de fato, acreditar que o milagre pudesse acontecer.
Realizados todos os exames, com acompanhamento da mãe, que não largava dele, ficamos aguardando que o Dr. Paulo nos passasse as notícias.
E elas vieram na semana seguinte.
Recebi um telefonema da Jussane, creio que na Terça-Feira seguinte, e já nas primeiras palavras dela pude notar que não estava tudo bem.
- O Dr Paulo pediu que você ligue prá ele prá marcar uma nova consulta. O mais rápido possível. Segundo ele, as notícias podem não ser muito boas...
Pronto. Não precisava me dizer mais nada. Acontecera o que eu temia mas relutava em admitir: o tumor devia ter voltado.
Nervoso, liguei imediatamente para o Dr.Paulo. E confirmou-se o meu temor. O exame chamado de “alfafetoproteína” (um marcador de tumores hepáticos) estava alterado. Seria preciso uma tomografia para confirmar. Lembro de ter pronunciado ao Dr. Paulo o velho clichê “e agora, Doutor?” e de ter ouvido dele um “calma, vamos analisar a situação...”
Fiquei muito preocupado, lógico, e imediatamente buscamos agendar a nova consulta. Seria na Quinta-Feira. Era preciso uma tomografia, para verificar o estado do fígado. O pai precisaria ficar baixado, pois caso se confirmasse o retorno do tumor, algum procedimento teria que ser iniciado de imediato.
Na Sexta-Feira eu tinha curso em Passo Fundo. Buscaria o pai no Sábado, em Erexim. Ou no Domingo, dependendo da situação.
E foi no intervalo do meu curso, no turno da noite, que recebi um telefonema do Nando, que tinha acompanhado o pai daquela vez.
- Más notícias, Marco – disse ele – o tumor voltou mesmo. A tomografia aponta dois novos nódulos, de 1,5 e 1 cm respectivamente. O Dr. Paulo precisa falar contigo amanhã, quando você vier buscar ele. Vamos ter que iniciar um tratamento, mas ainda não sabemos bem o que será feito. Está complicado.
Fiquei muito abatido, o que foi notado pelos colegas de curso. Na aula seguinte eu já não conversava com a mesma desenvoltura e os trabalhos já não rendiam como sempre. Tinha sido, de fato, um “balde de água fria” em nossas esperanças de ve-lo curado da doença. E o pior é que agora não haveria mais condições de se realizar procedimentos invasivos. Ele não agüentaria uma nova cirurgia e nem seria esse o procedimento indicado. Acho que foi naquele momento que a ficha finalmente caiu e eu percebi que começávamos definitivamente a perdê-lo...

domingo, 8 de agosto de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XL


A SURPRESA E A DECEPÇÃO



Sessenta dias.
Foi esse o prazo que o Dr. Paulo nos deu para levarmos o pai de volta a Erexim para exames. Era o final do mês de Abril e já marcamos no calendário a data provável de nosso retorno ao seu consultório.
Mas a recuperação lenta e gradativa do pai parecia ser tão consistente que acabamos nutrindo a esperança de podermos incluí-lo na fila de transplantes. Afinal, os transplantados de fígado, quando tudo dá certo, acabam ganhando uma sobrevida que os faz esquecer que estiveram doentes e vivem décadas a mais. Precisávamos tentar. Não nos contentaríamos com uma expectativa de vida tão curta para o nosso pai. Assim, tratamos de contatar novamente com a Marília, lá em Porto Alegre, para que intermediasse uma conversa com os médicos da equipe de transplantes do Hospital de Clínicas, a fim de sabermos se o pai iria ou não ser considerado um paciente com chances de ser incluído na fila, já que tínhamos conhecimento das exigências legais para tal. Aproveitamos e marcamos também uma consulta com o Dr. Sílvio, que queria vê-lo.
Em Junho, o pai e a mãe viajaram até Bento, para passar uns dias com a Mili. De lá, iriam a Porto Alegre. O pai estava bem. Conseguia viajar com tranqüilidade. A única coisa a atrapalhar era o vigor físico, que havia caído demais, deixando-o com as forças muito reduzidas. Mas já conseguia caminhar por distâncias maiores. Num ritmo bem mais lento do que antes, é verdade, mas conseguia. Quando ele e a mãe viajavam para
visitar a Mili e o Digo, ficávamos mais tranqüilos por aqui, pois sabíamos que ele estaria bem e feliz. Rever os netos Nain e Amanda era um bálsamo, pois a distância devia gerar uma saudade muito grande. Além do que, imagino que a consciência de portar uma doença grave e não ter certeza do tempo que lhe restava de vida devia fazer um efeito multiplicador nos seus sentimentos afetivos.
Feita a consulta com o Dr. Sílvio, que pode avaliar a sua condição naquele momento, foi a vez de ir até o Hospital de Clínicas e reunir-se com a equipe de médicos. Eu não estava junto, mas a Mili me relatou que dentre os médicos estavam alguns que o haviam atendido e liberado para voltar para casa, meses antes. Um deles, teria dito o seguinte, com surpresa: “Você aqui? Não era prá você estar aqui!”. Referia-se claramente à expectativa de sobrevida. Quando o liberaram para voltar à sua terra, o fizeram certos de que o homem não duraria mais do que dois ou três meses. Tudo indicava isso, segundo os exames e o acompanhamento da evolução de sua recuperação. E lá estava o seu Bernardo, contrariando a tudo isso. Debilitado, é verdade, mas firme, se recuperando. Sem dúvida uma grande e grata surpresa para os médicos que haviam cuidado dele.
A conversa, no entanto, evoluiu para um desfecho que não esperávamos. Após detalharem a condição da doença dele, os procedimentos realizados, o acompanhamento, o resultado dos exames, veio a sentença definitiva: ele não era paciente apto a concorrer a um transplante de fígado. A lei de transplantes prevê que podem ser incluídos pacientes com câncer hepático desde que o tumor inicial não seja superior a 5 cm quando descoberto e retirado, ou no máximo 3 pequenos tumores de no máximo 3 cm. O do pai era único, mas com mais de 8 cm. Além disso, havia a cirrose. E mais ainda, a idade dele, passando de 60 anos. Todos esses fatores, reunidos, colocavam-no definitivamente fora da lista de transplantes. Para nossa decepção. Nossa, não do pai. Ele nos confidenciou depois, que torceu muito para que não fosse possível colocá-lo na fila. Disse que não queria submeter-se a todo aquele sofrimento novamente, preferindo apostar numa recuperação mesmo que parcial do seu fígado. Não falou, mas deixou transparecer, que preferia enfrentar a morte do que outra cirurgia como aquela. Que preferia ter uma sobrevida menor, mas certa, do que deitar-se novamente em uma cama e não saber se acordaria para o mundo outra vez, já que os riscos seriam dobrados . E respeitamos sua opinião, mesmo decepcionados com a impossibilidade de inscrever seu nome na fila de transplantes.
A mensagem dos médicos ficou muito clara, naquele momento. Deveríamos continuar o tratamento com o Dr. Paulo, em Erexim. Não devíamos mais voltar ao HCPA com ele, porque não adiantaria. Já que ele conseguira sobreviver com índices tão baixos de atividade hepática e que havia um hospital e um médico próximos de Paim Filho em condições de acompanhar sua evolução, devíamos fazer isso. E torcer para que seu organismo desse jeito de curá-lo definitivamente e dar-lhe a tão esperada sobrevida. Afinal, ele já surpreendera os médicos em várias ocasiões. Quem sabe o milagre não estava por acontecer?...

sexta-feira, 16 de julho de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXIX


TENTANDO VOLTAR AO NORMAL


Os meses seguintes marcariam uma lenta recuperação, combinada com a gradativa volta à normalidade. Ou quase. O pai já conseguia caminhar. O suficiente para alguns passeios, para ir à missa e, principalmente, para rever os amigos. Matar a saudade de tudo o que mais gostava de fazer, que era estar no meio de muita gente alegre, contando suas piadas sem graça, falando do seu Grêmio, dando pitacos na política, opinando sobre qualquer assunto quando provocado. A bem da verdade, no entanto, a grande maioria das festas que gostava de freqüentar haviam perdido, agora, um pouco da graça. Ter apenas metade de um fígado significava também ter a digestão dificultada em 50%. As churrascadas, regadas a um bom vinho colonial, tiveram que ficar de lado, cedendo espaço para aconchegantes almoços em família, com muito guaraná e coca-cola. Comia pouco, agora. Aquele homem que, mesmo sem ser glutão, fartava-se de carne e vinho aos sábados, nos Miúdos – almoços que as comunidades do interior realizam na véspera das festas de capela – agora se satisfazia com menos de 50 gramas, acompanhadas de pequenas porções de salada. Comia de tudo, é verdade, mas numa quantidade ridiculamente pequena. E assim, manteve-se magro. Uma magreza que denunciava a doença. Tanto mais pela barriga que permanecia inchada, com formação de líquido, que vez por outra obrigava-lhe a tomar doses cavalares de diuréticos para eliminar. Mas tínhamos paciência. Sabíamos que a recuperação seria lenta. Sabíamos que tudo dependeria da regeneração do seu fígado. Da mesma forma que entendíamos todos os riscos dessa recuperação. Embora a esperança de vê-lo totalmente recuperado sempre existisse, não me saía da cabeça aquela sentença estatística proferida pelo Dr. Sílvio ainda na Santa Casa – “as chances de ele ter uma sobrevida de 3 anos após a cirurgia são de 30%...” Três anos! Míseros três anos!

Lá pelo mês de Abril o pai já mostrava um pouco mais de firmeza nas pernas e conseguia percorrer distâncias um pouco maiores. Isso lhe permitiu voltar a freqüentar a Igreja, o que foi extremamente importante. Ele sempre foi um católico praticante. Um exemplo de devoção. Desde criança sempre esteve ligado, de alguma forma, com a religião. Foi “coroinha”, ajudava o meu avô (que chegou a ser sacristão) em trabalhos na casa paroquial e na própria Igreja e com 18 anos passou a integrar a “Ordem Terceira Franciscana”, a ala leiga criada por São Francisco de Assis, seu santo predileto. Daí para diante, nunca mais se desligaria do movimento. Integrava o coral (outra de suas paixões), era Cursilhista e ultimamente “Tio do CLJ”. Agora, mesmo sem força suficiente para cantar, não dispensava o livro de cantos e ficava balbuciando as estrofes durante as missas. Como cansava com muita facilidade, boa parte do tempo ficava sentado nas cerimônias, mas isso jamais o fez deixar de freqüentar a Igreja um único Domingo enquanto teve forças para se dirigir ao Santuário. Sabe-se lá o quanto esse homem rezou e pediu que Deus lhe prolongasse a vida pelo máximo de tempo possível. Vontade e força interior para isso não lhe faltavam. E hoje não tenho a menor dúvida de que sua fé foi fator decisivo para ter contrariado a todos os médicos e ficado conosco por um tempo muito maior do que as frias estatísticas do Dr. Sílvio pudessem prever. Afinal, aquela previsão do Dr. Sílvio não se aplicava a pacientes com cirrose, o que indicava, na visão dos especialistas, uma sobrevida de no máximo 6 meses, talvez um ano...

domingo, 27 de junho de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXVIII



O RECOMEÇO



A quantidade de remédios que os médicos lhe haviam recomendado até que era bem menor do que eu esperava. Um diurético para diminuir a ascite(acúmulo de líquido no abdômen), um comprimido para auxiliar na digestão e uma injeção para manter a estabilidade do sangue. Junto vieram por escrito as recomendações ao Dr. Paulo Cavazzola, o gastroenterologista do Hospital de Caridade de Erexim que iniciara a investigação da sua doença e que agora acompanharia o seu tratamento de recuperação, enquanto esperava-se a lenta regeneração do fígado. No mais, restava-nos esperar, torcendo para que o tumor tivesse sido totalmente eliminado e que a doença não viesse a retornar.
*
No primeiro final de semana após o seu retorno, tínhamos que ir a Paim Filho de qualquer maneira e fazer aquele tradicional churrasco dominical com toda a família reunida. Seria o primeiro desde Dezembro de 2005. E foi emocionante ver a família toda reunida novamente.
Toda em termos, pois a Mili e o Digo estavam em Bento. Mas sempre nos reuníamos junto com o pai, a mãe e a família do Nando. “Os de Bento” vinham mais esporadicamente, de modo que na maioria das vezes era essa a turma que se reunia para almoçar aos domingos. E voltar a fazer um almoço onde não faltava ninguém, como tememos tanto que viesse a acontecer durante os últimos meses, foi bom demais. Tiramos fotos, curtimos aquele momento como nunca antes havíamos curtido. E ao final do almoço, em que o pai comeu churrasco depois de tanto tempo, ainda sobrou espaço para um joguinho de baralho, coisa que ele adorava. Chamou-me a atenção que ele comeu de tudo. Em pequenas quantidades, é verdade, mas degustou a carne, a salada, a massa. E não aconteceu como lá no hospital, onde seu estômago rejeitava tudo o que comia. Ao contrário, perguntei como se sentia e ele disse “muito bem, estava com saudade de comer churrasco...” Foi bom ouvir isso.
Interessante: pela primeira vez em muitos e muitos anos nos demos conta de que a bebida a acompanhar o churrasco foi unicamente... refrigerante. O álcool teria que ser banido de nossos almoços. E tivemos consciência naquele momento de que mesmo sem bebidas de álcool era possível tornar o almoço tão prazeroso quanto nos tempos em que nos fartávamos de cerveja enquanto o pai
mandava ver no vinho, para depois cair no sono até as quatro da tarde – nem via quando íamos embora. Dessa vez foi diferente. Ele foi dormir, cansado que estava, mas não sem antes jogar uma partida de canastra. Foi estranho e confortantemente diferente aquele almoço dominical. Ele próprio sabia que nunca mais poderia tomar um único gole de sua bebida preferida. Nunca mais. Mas também sabia que esse seria o preço a pagar para continuar vivo. Pelo tempo que Deus agora permitisse.
**
Nos dias que se seguiram ele realizou os primeiros exames no Hospital Santa Terezinha, de Paim Filho, acompanhado pelo Dr. Olando Caús. Os resultados apontavam um fígado em recuperação, com os índices ainda muito deficientes, acusando uma insuficiência hepática importante, mas também apontando para uma lenta e progressiva recuperação, dando a entender que o órgão aos poucos se regenerava, mesmo que a cirrose hepática atrapalhasse – e muito – esse processo.
Eu passei a acompanhar de perto todos os exames do pai. Pedia que me passassem por fax os resultados e depois ligava prá ele, sempre procurando animá-lo, dizendo que os exames estavam muito bons. Nem sempre estavam, mas mesmo assim eu fazia isso, na esperança de manter alto o seu astral e influir na sua recuperação. Lancei todos os dados no computador. Mantenho comigo até hoje a quase totalidade dos seus exames. Vez por outra eu os mandava por e-mail ao Dr. Sílvio, que me repassava algumas recomendações e eu retransmitia imediatamente ao pai e à mãe. Tenho arquivados todos os e-mails trocados com o Dr. Sílvio. Como esse que reproduzo abaixo, enviado logo nos primeiros exames realizados em Paim Filho:

“ 04/04/2006

ASSUNTO: Notícias do Seu Egídio


Boa noite Dr. Sílvio!

Envio notícias do “seu Egídio”, para que você possa acompanhar.
Ele vem realizando exames semanais para acompanhar a evolução. Aos poucos ele vai retomando a rotina, inclusive atendendo no balcão da farmácia, coisa que gosta de fazer, além de ir à missa e caminhar um pouco, embora a fraqueza persistente, em função do quadro que apresenta. Importante é que ele não teve febre, como era sua preocupação, sinal de que a ascite, assim controlada, pode não gerar maiores problemas.
Eis o resultado de alguns itens do exames realizado ontem:
- hemoglobina: 11
- Leucócitos 4.300
- plaquetas 50.000
- Bilirrubinas 2,4
- Transaminases no limite de normalidade
- Protrombina mantida em 43%.
Esta semana pretendemos levá-lo para uma consulta com o Dr. Paulo, em Erexim, para uma avaliação.

Um abraço!

Marco “

Depois o Dr. Sílvio me respondia, dando orientações e dizendo o que achava da recuperação dele. “A esta altura do campeonato”, acredito que o pai já era um “case” para ele e sua equipe, pois reinava o ceticismo entre os médicos quanto à sua sobrevivência, pelas condições pós cirúrgicas, pela cirrose instalada, pelos índices deficientes dos exames. Mas o paciente não só teimava em ficar vivo como dava mostras de ter ganho uma sobrevida maior do que se esperava.

domingo, 13 de junho de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXXVII

Em casa, finalmente

A notícia de que o pai estava retornando naquele dia caiu com uma bomba. Apressei-me em informar a todos os parentes, amigos, colegas, com incontida euforia. As pessoas percebiam essa euforia nas minhas palavras e compartilhavam aquele momento, entendendo o sentimento que tomava conta de mim, ficando rapidamente contaminados pela mesma alegria. E completavam com palavras de incentivo. De fato, já não importava mais em que estado voltariam a ver o Bernardo, mas que finalmente voltariam a vê-lo. Vivo. Coisa impensável por um um bom tempo durante sua recuperação naquele período pós-cirúrgico em Porto Alegre.
Em Paim Filho não foi diferente. Nas cidades pequenas o "boca-a-boca" pode ser mais rápido que as ondas do rádio. Em poucas horas a cidade toda sabia que aquele personagem local a quem haviam dedicado horas e horas de orações estava voltando para casa, senão recuperado, em condições de continuar sua recuperação junto de familiares e amigos, como era desejo dele e de todos.
* * *
Mal esperei para concluir os trabalhos daquela tarde e pedi licença aos colegas da agência. Eu tinha que sair mais cedo, pois uma viagem, curta mas importante, me aguardava. Não que eu precisasse sair mais cedo, pois a previsão era de que chegariam de Porto Alegre depois das 7 da tarde, mas porque naquele dia não era mais o trabalho que me motivava e sim a expectativa nervosa de rever o pai. Sabia que o encontraria debilitado, mais magro, envelhecido, até. Mas também sabia que estaria lá um homem esperançoso, feliz com o retorno, com saudades e ansioso por reencontros. Fazia então mais de 10 dias que eu não o via, desde a última viagem a Porto Alegre. O último final de semana eu havia reservado para minha esposa e minhas filhas. Era o primeiro que eu passara integralmente com elas nos últimos 60 dias, desde a internação dele na Santa Casa. A rotina desde então, era trabalhar de segunda Sexta-Feira, viajar na Sexta à noite para a capital e retornar no Domingo. Mesmo no meu período de férias, quando a ordem se invertera, eu viajava no domingo à tarde e retornava, à vezes, apenas na madrugada do domingo seguinte. De forma ininterrupta. É assim que acontece quando se tem um familiar doente sendo tratado num hospital distante. Quem já passou por isso sabe do que estou falando. Naquele final de semana, portanto, diante do fato de que o pai já estava na iminência de receber alta, não tive como dizer que não, quando minhas três mulheres da casa literalmente me "intimaram" a ficar em São José do Ouro.
* * *
Chegamos em Paim Filho por volta das 7 da noite. Era o mês de Março e já não havia horário de verão, de modo que o sol já baixara no horizonte. Mas o calor ainda era forte. Estacionei o carro na frente da farmácia, que já havia fechado. Já na garagem da casa, ouvimos vozes, dando conta de que o pai já estava na sala. Com o coração mais acelerado, adiantei-me e abri a porta, na expectativa de vê-lo. E lá estava ele. Sentado na "cadeira-de-papai" com que lhe haviamos presenteado anos antes, rodeado pela família do Nando e alguns amigos, revendo algumas fotografias, enquanto sorria com ar cansado. Estava, de fato, muito mais magro do que eu poderia supor. Os cabelos grisalhos haviam crescido muito além do que normalmente ele deixava crescerem e sua pele, antes corada e de aspecto saudável, agora lhe dava ares de uma pessoa extremamente doente. Em dez dias, o pai havia mudado muito. Sua fisionomia não era mais aquela do "jovem sexagenário" , como ele sempre brincava, mas de um idoso de mais de 80 anos. Sem exagero. Cheguei perto dele e tive que chamar sua atenção, pois estava concentrado numa foto. O sorriso que abriu quando me viu pareceu tocar o fundo da minha alma. Abracei sua cabeça contra meu peito como se o fizesse com uma bola de futebol e beijei sua testa empapada de suor, enquanto continha as lágrimas que ansiavam em brotar dos meus olhos. Me segurei. Desta vez não. Desta vez eu não iria chorar. Desta vez eu queria rir, fazer as tradicionais brincadeiras sem graça como sempre fazíamos e conversar. Atualizar notícias. Contar dos parentes. Saber das recomendações médicas.
Então voltei-me para a porta da cozinha. A mãe estava lá, limpando alguma coisa e já preparando algo para o jantar. Me dei conta, então, de que não havia lhe abraçado. Ela voltara junto com o pai. E não recebera nenhuma atenção. Ela, que fora aquela fortaleza desde o início de nossa odisséia, não arredando pé de perto do pai um único instante, também estava ali. Também retornara. Também estava cansada. Também queria um beijo e um abraço. Fui até ela e lhe dei um abraço forte e um beijo na testa. Ela me olhou nos olhos, apontou-me o indicador e disse sorrindo: "acredita agora? Eu não disse que traria ele de volta?". Referia-se claramente àquele dia em que cheguei ao apartamento da Marília em desespero pelo fato de o Dr. Sílvio tê-lo praticamente "desenganado" antes do exame fatídico que poderia apontar uma grave complicação e levá-lo definitivamente à morte, o que não se confirmou depois. Foi naquele dia, depois de passado o susto, que ela debruçou-se em orações e passou a afirmar com impressionante segurança que o pai iria retornar vivo para Paim Filho. E mesmo nos piores momentos, quando tudo indicava o contrário, manteve sua convicção. Dei-lhe mais um abraço e só pude concordar: "é, mãe, você estava certa. Ele está aí!".

sábado, 29 de maio de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXVI


O RETORNO ESTAVA PRÓXIMO


As notícias começavam a melhorar. Cada telefonema da Mili nos dava mais certeza de que o pai poderia ser liberado, recebendo alta. Os exames de sangue apresentavam melhoras constantes, mesmo que em índices ainda muito baixos. Mas acredito que nem os próprios médicos tinham noção de como poderia evoluir o caso do pai. O fato é que naquele momento podia não fazer mais muita diferença mantê-lo no hospital ou deixá-lo retornar e seguir o tratamento em casa. A alimentação já era normal, não havia mais infecção. A etapa agora era de observar e torcer para que o fígado, mesmo cirrótico, continuasse a sua regeneração até o ponto de mantê-lo com o mínimo possível de insuficiência hepática. Com um pouco de sorte, caso o fígado conseguisse uma regeneração completa, talvez ele nem tivesse insuficiência, o que seria fantástico em termos clínicos, proporcionando-lhe uma sobrevida muito longa. Era o nosso sonho. Mas não era a expectativa dos médicos, certamente, pois as estatísticas conspiravam contra um prognóstico tão positivo. Mesmo assim acreditamos. O tempo todo. E cada boa notícia nos enchia de mais e mais esperança.

* * *

E assim, enquanto seguíamos nossa rotina, ficávamos conectados com a Mili, acompanhando com expectativa aquele bom momento. Eu ligava duas, três vezes por dia, em busca de notícias, que repassava a familiares e amigos, principalmente de Paim Filho, onde continuavam as orações pela recuperação do pai.
A partir do momento em que percebemos haver possibilidade real de alta para ele, passamos a fazer uma certa pressão sobre os médicos do HCPA, pedindo que o liberassem o mais rápido possível. Argumentávamos que sua recuperação poderia seguir normalmente em casa, que junto dos familiares e amigos ele poderia se sentir melhor e ter uma recuperação mais rápida e até dizíamos que, caso “tudo desse errado” ele poderia morrer mais feliz nessas condições... Além disso, tentávamos fazê-los compreender a nossa dificuldade em nos mantermos em Porto Alegre, falávamos dos custos, das viagens caras, enfim, usamos todos os argumentos que estavam a nosso alcance para tentar trazer o pai para casa. Acreditávamos, de fato, que isso faria muito bem a ele. E também estávamos conscientes de que se a sua vida, afinal, tivesse sido encurtada, seria extremamente importante que ele estivesse ao lado de amigos e familiares em seus momentos finais. Tudo isso passava pela nossa cabeça.
Mas deve ter sido decisivo para a liberação dele o fato de informarmos que ele poderia seguir sendo acompanhado em Erexim, no Hospital de Caridade, pelo Dr. Paulo Cavazzola, o gastroenterologista que havia diagnosticado a sua doença e que estaria a pouco mais de 70 Km de Paim Filho, sem falar que ali, em Erexim, poderíamos aproveitar o plano de saúde da UNIMED, o que não fora possível em Porto Alegre, por ser um plano regional.
Assim, no início de Março de 2006, após quase 60 dias de internação, o pai recebeu alta e retornou. De carona com com o Ique, que era Prefeito de Paim Filho e estava em viagem em Porto Alegre. Imagine-se a alegria da família e dos amigos. Foi emocionante receber aquele telefonema e ouvir a confirmação da Mili de que o pai estaria retornando naquele dia e chegaria no final da tarde.
Tente se colocar no meu lugar e sentir a sensação de “dever cumprido” que transpassou minha alma naquele momento! Era uma indescritível sensação de vitória, que coroava todo o esforço, todo o sofrimento, toda a dedicação e todo o stress vivido por alguém que assumira toda a responsabilidade de buscar a cura ou a sobrevida do próprio pai e que havia enfrentado situações as mais diversas no transcurso de quase 5 meses desde a descoberta da doença – desde a angústia pela espera de um leito na Santa Casa, passando pelo desespero da iminência da falta de recursos financeiros que levaria à falência total da família, até o ceticismo de algumas pessoas que imaginavam não termos feito a escolha correta no encaminhamento do caso... Tudo agora se apagava e era recoberto pelo manto da alegria e da satisfação de perceber que as coisas, afinal, haviam dado certo. E mais uma vez desliguei o telefone e desandei a chorar copiosamente nos ombros da Neu. Desta vez, porém, de felicidade.



domingo, 16 de maio de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXV


DEIXANDO A CTI



De certa forma, parecia que havíamos nos acostumado com a rotina e aos poucos começava a parecer distante o dia em que o pai sairia daquele hospital e retornaria para perto de nós. A sua lenta recuperação nos dava esperança, certeza até, de que isso acabaria acontecendo. Mas a sensação era estranha. Era como se o ato de assinar o documento de alta por parte dos médicos fosse algo proibitivo naquele momento. Quando retornei, lembro que passei toda a viagem de ônibus imaginando as mais diversas situações. Entre elas a possibilidade de ele nunca mais deixar o hospital. Seria trágico perdê-lo sem poder trazê-lo de volta para seus amigos, para a cidade que tanto amava, considerando a forma abrupta como tudo acontecera. E isso me angustiava muito. Lembro que num daqueles dias em que a doença lhe arrebatava a sanidade, encontrei-o chorando pela manhã, na primeira visita. Passei a mão em sua testa e perguntei sobre o que estaria acontecendo. “Estou com saudades dos meus amigos” – respondeu ele, enquanto as lágrimas desciam pelo seu rosto e já empapavam parte do lençol, fazendo crer que aquele pranto se estendera durante vários minutos. Então lhe sorri e disse que estava próximo o momento em que deixaria o hospital e retornaria para Paim Filho. Ele até parou por alguns momentos e vi seus olhos brilharem, para logo em seguida voltar a chorar. “Eu queria voltar prá poder pedir desculpas a eles...” – disse em tom choroso. Fiquei surpreso. “Desculpas? Por que pedir desculpas aos teus amigos, pai?” Ele me olhou firme nos olhos: “muitas vezes eu os tratei mal...” Ora, meu pai ter “tratado mal” aos amigos me soava totalmente absurdo. Ele não era capaz de tratar mal a uma formiga. Mas logo entendi que se tratava de saudade mesmo. Havia se quebrado uma rotina de décadas de convivência numa pequena comunidade do interior. E quase 50 dias num leito de hospital, afastado de tudo o que mais lhe dava prazer devia ser torturante, mesmo para uma mente afetada pela medicação e pela doença.
******
No início da semana, já de volta ao trabalho, recebi uma ligação da Mili, num final de tarde.
- Marco, o pai foi transferido para um quarto.
- Saiu da CTI? Não acredito! – respondi com estupefação.
- Pode acreditar. Os médicos estiveram aqui pela manhã, analisaram os exames e chegaram à conclusão de que a melhora dos últimos dias é consistente. Os índices avaliados estão subindo gradativamente e se mantendo. Ele não tem mais infecção e o fígado parece que já dá conta de manter o organismo. Tiraram a sonda nasal, ele já se alimenta sozinho e não rejeita mais a alimentação.
Era a melhor notícia que eu recebia desde a descoberta da doença do pai. E naquele instante passei a acreditar mais firmemente que o veríamos em breve de volta para o seu meio, para o aconchego de sua casa, e finalmente para seus amigos.
A Mili ainda completou, : “Acho que vou ser eu que vou levar o pai para casa...”
Não me contive. Liguei para os meus irmãos, para meus tios e primos, para os colegas de trabalho. E todos ficaram muito contentes com a notícia. Depois de tudo o que acontecera, não deixava de ser um grande alento a possibilidade de rever o Bernardo. Estivesse ele do jeito que estivesse. Saudável ou doente. Importava mesmo era tê-lo de volta. A comunidade inteira ansiava por isso
.

domingo, 25 de abril de 2010




HOJE NOSSO PAI COMPLETARIA 68 ANOS DE IDADE!

PARABÉNS, PAI.

NÃO DEIXAMOS DE PENSAR EM VOCÊ UM SÓ DIA DE NOSSAS VIDAS!

sábado, 17 de abril de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXIV


APERTOS...




Aproximava-se o final de Fevereiro e uma preocupação a mais nos assaltava. As férias da Marília estavam por terminar e ela fatalmente retornaria. Apesar de toda a sua gentileza, apesar de afirmar e reafirmar que poderíamos ficar ali o tempo que fosse necessário, é certo que não ficaríamos totalmente à vontade. Uma coisa era ocuparmos o seu apartamento em sua ausência fazendo as vezes, até, de “guardiões do patrimônio”. Outra bem diferente seria dividir o apartamento com sua família. Preocupava-nos a questão da privacidade, a possibilidade de atrapalharmos a sua rotina, enfim, coisas que talvez só estivessem em nossa cabeça, mas que com certeza povoariam os pensamentos de qualquer pessoa em nossa condição, mesmo que se tratasse de familiares tão próximos. Além do mais, achávamos que quase um mês ocupando aquele apartamento era um tempo mais do que suficiente. Por conta disso já nos obrigávamos a pensar num “plano C”, embora tivéssemos certeza de que a Marília não nos deixaria sair de lá assim tão facilmente.
Mas o pai continuava a apresentar um quadro que teimava em não evoluir. Se, por um lado, parecia que a infecção hospitalar estava debelada, os indícios davam conta de que seu fígado demorava muito a regenerar-se, muito provavelmente em razão da cirrose. Assim, as funções hepáticas iam se recuperando com grande lentidão.
Depois do carnaval, eu tive que retornar ao trabalho. Seria então a vez da Mili ficar com ele. A expectativa era de que em breve ele fosse transferido da UTI para um quarto e pudesse ser liberado. Já tínhamos a certeza de que o pior passara. E a cada dia ficava mais evidente que ele receberia alta e voltaria para sua terra, para junto de nós, novamente, nem que fosse por pouco tempo.
No entanto, dias difíceis ainda estavam por vir.

***

A sua digestão era difícil. O organismo parecia não aceitar outra alimentação que não fosse aquela dada através da sonda nasal. Eram parcas as colheradas de alimentos que ele conseguia engolir sem desembocar numa crise de vômito. E assim ele foi emagrecendo. Eu temia que o longo tempo deitado lhe impusesse as conseqüências que sempre se via nos pacientes que ficam acamados durante muito tempo, como as lesões na pele das costas ou a atrofia gradativa dos membros. Por isso mesmo, a Mili e eu o forçávamos a sair da cama e o levávamos com freqüência pelos corredores do hospital, ora caminhando alguns passos, ora na cadeira de rodas. Eram alguns poucos minutos, porque logo queria retornar ao conforto do leito. Num certo dia um dos médicos que o acompanhavam deixou instruções para que os enfermeiros nos proibissem de tirá-lo da cama até segunda ordem. Havia ficado um orifício no lado direito de seu abdômen, por onde estivera ligada uma sonda que drenava o líquido acumulado. E aquele orifício não fechava, talvez pela pressão exercida pelos órgãos internos e pela ação da gravidade quando seu corpo estivesse de pé. Ao menos era esse o entendimento do médico. Com o que não concordamos. Desobedecemos a ordem e continuamos fazendo-o caminhar pelo hospital, sem que os enfermeiros ficassem sabendo. Se, por um lado, aquela cicatriz demorou mais a fechar, por outro não temos dúvidas, hoje, de que termos mantido o seu corpo em movimento também ajudou a mantê-lo vivo.

***
Também um outro problema começava a aparecer naquele final de Fevereiro de 2006: o dinheiro começava a ficar escasso.
Eu já havia esgotado todos os recursos. Tinham ido as economias, os adiantamentos de férias, o limite do cheque especial. As viagens entre São José do Ouro e Porto Alegre custavam quase R$ 200,00 ida e volta. E eu havia feito dezenas delas. As inúmeras despesas com exames, transferência de hospital e outras que haviam sido necessárias até então, haviam esgotado a minha capacidade financeira naquele momento. Se a situação perdurasse por muito mais tempo, teria que recorrer a algum empréstimo no Banco. Com meus irmãos não era diferente. Cada qual tinha suas dificuldades e havia também chegado ao seu limite. E a mãe contava apenas com a aposentadoria do pai que, deduzidos os R$ 450,00 do plano de saúde e as contas normais de água, luz, telefone acabava em menos de R$ 100,00. Em vista disso, fiquei muito emocionado quando soube que o nosso primo Calo (Pedroni) de Caxias do Sul, numa visita de surpresa, havia deixado R$ 500,00 para a mãe para ajudar nas despesas. Assim, espontaneamente, mesmo que no início a mãe tivesse relutado em aceitar. Mas mesmo ela sabia que naquele momento qualquer ajuda era muito bem vinda. E mais uma vez entendi que gestos como aquele nada mais significavam do uma espécie de gratidão ao meu pai. Ou, no caso do Calo, uma maneira de demonstrar o carinho por ele e pela família. Também seremos eternamente gratos por esse gesto. No entanto, não deixava de ser inusitado o fato de termos chegado a esse ponto, tão de repente. Nunca fomos uma família de posses, é verdade, mas também jamais havíamos enfrentado situações de grande aperto financeiro. Tanto mais uma situação como aquela. Nos assustava, de fato, a iminência da falta de recursos. Mas demos a volta. Graças a Deus e aos amigos.

***
E finalmente retornei, agora para tentar retomar a rotina no Banco. Eram quase 50 dias de internação do pai. Meu período de férias já havia terminado, assim como as férias do Nando e do Digo. De agora em diante seria tudo com a Mili.



domingo, 28 de março de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXIII



ESTRANHA PREMONIÇÃO...



Havia momentos em que a encefalopatia produzia alguns episódios comoventes e ao mesmo tempo assustadores.
Numa certa manhã, ao indagar sobre como fora sua noite, recebi inusitada resposta:
- Teria sido boa, se não fosse o barulho...
- Como assim, pai – perguntei – o barulho dos carros na avenida tem te incomodado?
- Não, não – disse ele – o barulho das sinetas, os cantos, o sino...tudo isso não me deixou dormir...
- Mas o que aconteceu, pai? Não estou entendendo... (mas já deduzindo que era outra de suas alucinações).
- Foi uma cerimônia longa e muito barulhenta...
- Mas que raio de cerimônia, pai? Continuo não entendendo...
- Ora – disse então- a cerimônia da minha morte...
E emendou:
- Foi uma cerimônia muito bonita. O padre Pedro presidiu.
E desatou a contar detalhes da missa que supostamente havia sido rezada em Paim Filho e que seria a do seu enterro.
Detalhe: o Padre Pedro a que ele se referiu havia trabalhado em Paim Filho até o final da década de 90 e nunca mais havíamos ouvido falar dele. Coincidentemente, na tarde daquele dia alguém de Paim Filho nos visitou no hospital e nos deu a notícia de que estava trocando o padre da paróquia. E adivinhem quem estava voltando? O próprio. O padre Pedro. Não é de arrepiar? Não é daquelas coisas que a ciência não explica? Como é que um paciente com encefalopatia, em meio às suas alucinações causadas pela doença pode antever, de alguma forma, que aquele Padre, justamente o personagem da imaginária “cerimônia” voltaria à cena na sua cidade natal?
De qualquer forma, acabei rindo por dentro, de tão absurda idéia. Mas confesso que ao mesmo tempo senti estar diante de algum daqueles fenômenos paranormais. Imaginar a própria morte em sonhos é algo até normal, mas ele me explicou a tal cerimônia com tamanha riqueza de detalhes que me deixou muito impressionado.
Quando contei aquilo aos meus familiares houve quem se emocionasse, indo às lágrimas. Era estranho, mesmo. Chico Xavier explicaria?

* * *

As visitas se sucediam.
Amigos e parentes apareciam todos os dias no hospital, trazendo solidariedade e tentando manter nossas esperanças na recuperação dele. Traziam notícias de Paim Filho e nos falavam das correntes de oração que eram feitas pela comunidade. Rezou-se muito. O pai era, de fato, um personagem painfilhense. Por sua profissão, pelo seu engajamento nas entidades locais, por sua participação efetiva na Igreja e por suas ações de caridade, além de uma simpatia inigualável, não havia quem não o conhecesse e que dele pudesse não gostar. Era uma figura adorável.
Um dia o Nando me ligou e me disse que o Rotary Club de Paim Filho estava promovendo uma rifa para arrecadar recursos para ajudar a família nas despesas. Os companheiros rotarianos conheciam a história da família e sabiam de nossos parcos recursos. Num primeiro momento não recebi muito bem a idéia, mas depois, quando me disseram que o Dr. Alevino estaria doando um novilho de sua fazenda para a realização da rifa, acabei aceitando aquilo como sendo uma espécie de retribuição, tantas foram as vezes em que o pai havia liderado ações semelhantes através do Rotary para ajudar pessoas necessitadas. E agora era ele nessa condições. Senti que faria bem ao Rotary. Tenho certeza que os companheiros queriam sentir que estavam fazendo a sua parte. E fizeram. Dias depois, já recuperado da encefalopatia, o pai chorou ao saber dessa história.


sexta-feira, 19 de março de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...


PARTE XXXII


A ENCEFALOPATIA




A partir do momento em que os médicos perceberam a primeira reação do fígado do pai, após 10 dias de puro ceticismo quanto às possibilidades de recuperação, passaram a dedicar ainda mais atenção ao seu caso. Continuaram ministrando antibióticos cada vez mais fortes, na tentativa de debelar a infecção, que agora representava o maior risco à sua sobrevivência. Mas principalmente, ao que parece, passaram a acreditar que era possível salvá-lo e permitir que sobrevivesse por mais alguns anos. Ficamos sabendo, tempos depois, com o pai já recuperado, que os médicos do HCPA travaram uma luta muito grande com o coordenador de distribuição de medicamentos do SUS, que num dado momento passou a questionar o uso de um antibiótico tão caro (coisa de quase R$ 1.000,00 por frasco) naquele paciente, que afinal de contas passava dos 60 anos de idade e tinha reduzidas chances de sobrevida. Mas uma vida é uma vida. E todo médico traz em si, no mais íntimo de sua vocação, a certeza de que sua missão é preservá-la, enquanto houver um fio de esperança. Era o caso. Ainda mais agora, que surgia uma tênue luzinha no final do túnel...

* * * *

Enquanto o medicamento agia, o fígado lutava para realizar suas funções de filtragem no organismo dele. Mas a insuficiência hepática oscilava e havia dias em que os exames recuavam bastante. E então o principal efeito colateral se manifestava: a encefalopatia. Esse distúrbio mental costuma acometer quem tem o fígado comprometido por alguma enfermidade mais grave ou pelo alcoolismo e manifesta-se com confusão mental, alucinações, desorientação.
Em meio a tanto sofrimento na espera da recuperação dele, nos deparamos com algumas situações muito engraçadas, que aliviavam um pouco o peso da espera.
Lembro que certa manhã (ou tarde) eu cheguei próximo ao leito e perguntei como ele estava se sentindo.
- Não estou muito contente... – respondeu com cara amarrada, como se estivesse bravo com alguma coisa.
- O que houve pai, não estão te tratando bem aqui?
- Nem sempre...
- Como assim? – indaguei surpreso.
- Veja bem, - disse ele- o que os demais pacientes dessa ala tem de diferente de mim? As enfermeiras dão coisas pra eles que pra mim não dão...
- O quê por exemplo, pai? – insisti.
- Ora, o Chopp!!!
Não me contive e desatei a rir.
- Chopp, pai? Que chopp é esse? Aqui no hospital? Ora essa...
E então ele apontou com o dedo. Sobre o balcão à nossa frente havia alguns frascos contendo soro fisiológico, medicamentos, água.
Convenhamos, confundir um frasco de soro com um copo de chopp não é algo assim tão natural... Quando contei isso à mãe e aos meus irmãos, foi uma risada só. E eu pensava comigo: “quando tudo isso acabar, vamos rir muito, junto com ele, lembrando de suas alucinações...”

* * * *

A comida que lhe serviam por via oral, tentando aos poucos retirar a sonda, tinha que ser cuidadosamente preparada. Era à base de cremes pastosos, porém sem sal, sem qualquer tipo de tempero. Devia ser gostosíssima... E não conseguíamos fazer com que comesse mais do que duas ou três colheradas. Ficávamos contentes quando conseguia ingerir pequenas porções a mais.
Num desses dias, após fazê-lo comer algumas colheradas de um creme verde, que devia ser à base de espinafre, ousei perguntar:
- E aí, véio, gostou?
- Mas “bah” – disse ele – é “súgulo”!
E de novo desatei a rir.
Súgulo é o nome de um creme preparado com suco de uva, açúcar e maisena, muito conhecido da colônia italiana, mas que hoje quase não se ouve mais falar. Em sua infância, deve ter sido a sua sobremesa mais freqüente. E agora seu cérebro rebuscava essas lembranças e confundia-lhe o paladar.
Foi realmente hilário... e de novo nos divertimos, entre preocupados e esperançosos de que o distúrbio logo passasse...

domingo, 28 de fevereiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXI


O DÉCIMO DIA


O décimo dia!
Como se fora um número cabalístico, daqueles que parecem dividir águas, criando um antes e um depois, tínhamos nos fixado nele, fazendo parecer que não haveria outra chance. Ou o corpo dele reagiria ou caminharia para o não desejado desfecho. As coisas, porém, não são assim tão rígidas. Além disso, o Dr. Sílvio baseava-se nas estatísticas, nos seus registros pessoais, na sua experiência com os inúmeros casos idênticos com os quais já havia interagido. E era uma bagagem e tanto, que lhe conferia, de fato, credibilidade suficiente para nos fazer crer em suas afirmações. Mas também é verdade que toda regra tem exceção, até na medicina. E aí lembrávamos daquela enfermeira que nos surpreendera afirmando que nem sempre a sentença proferida pelos médicos se cumpre à risca.
De qualquer modo, todos acordamos tensos naquele primeiro dia de Fevereiro de 2006. Tanto quem estava em Porto Alegre quanto quem acompanhava à distância.
Como em todos os dias anteriores, fui para o hospital por volta das 9 horas. Quando cheguei, os médicos já o haviam examinado e não havia ninguém além dos pacientes naquela ala. No leito próximo à janela, o pai dormia profundamente, a boca entreaberta, um lençol cobria-lhe até o peito, e os tubos e fios permaneciam conectados, assim como a sonda que lhe penetrava pelo nariz e descia até o estômago para permitir a alimentação com aquelas substâncias nutritivas que se dá aos pacientes em CTI. Não quis acordá-lo. O que eu queria naquele momento era saber do exame matinal que era feito do sangue que lhe tiravam todos os dias para avaliar a capacidade do seu fígado. Era o décimo dia. Era naquele dia que saberíamos se ele iria ou não se recuperar. Ao menos pelo que determinavam as estatísticas do Dr. Sílvio, que eu sabia que já não acreditava nisso e apenas não me falava para não subtrair-me os respingos de esperança que ainda me mantinham confiante.
Subitamente dei meia volta e fui até o corredor, pois sabia que os médicos ainda estariam por aí, em algum outro quarto. Sentei-me no banco do corredor e apoiei a cabeça sobre os cotovelos, pensativo, enquanto aguardava que alguém aparecesse para conversar sobre os exames.
Da terceira porta, adiante da ala em que estávamos, surgiu de repente um médico. Levantei-me e fui ao seu encontro, deixando transparecer minha ansiedade, logo percebida por ele. Era um dos médicos que atendia o pai. E me reconheceu também, vindo em minha direção. Não sei por que, mas ao avistá-lo tive uma sensação diferente. Talvez o seu semblante denunciasse que algo diferente acontecera naquela manhã, sei lá.
- Bom dia – disse ele – você é o filho do seu Egídio, né?
- Sim, Doutor – respondi – estamos um tanto apreensivos com os exames do pai, porque hoje é o décimo dia...o Sr. sabe...o Dr. Sílvio nos disse que...
- Bem, – interrompeu ele – se o décimo dia era mesmo a vossa preocupação, acho que tenho uma boa notícia. O exame mostrou uma recuperação da capacidade do fígado do seu pai, de forma até surpreendente, porque não estávamos mais tão confiantes. O índice de TP (tempo de protrombina) subiu para 36 %...
- E?
- Bom, acho que isso significa que o fígado do seu Egídio está reagindo, ou seja, não está dando mostras de que irá “definhar”, ao contrário, isso quer dizer que a regeneração dos tecidos está acontecendo. No entanto, devo advertir a vocês que isso não quer dizer nada. Ainda. Ele tem uma insuficiência hepática de moderada a grave, que ainda pode ter um desfecho ruim. A infecção abdominal persiste muito forte, mas o antibiótico está sendo eficaz. Temos que aguardar. Desde o início temos falado que a recuperação dele seria muito, muito lenta, dependeria da regeneração dos tecidos hepáticos e qualquer prognóstico agora seria muito arriscado...
- Mas dá pra manter a esperança, ainda, Dr.?
- Sem dúvida, sem dúvida. Se não estivéssemos mais acreditando nisso, teríamos desistido do caso. A situação ainda é complicada, mas dá pra acreditar, sim.
Apertei-lhe a mão enquanto tentava esconder uma certa euforia que tomava conta de mim.
Não voltei à CTI. Não sem antes ligar para o Dr. Sílvio e para todos os familiares, dando a boa notícia. O Dr. Sílvio pareceu ficar particularmente satisfeito. Pela primeira vez depois da cirurgia ele também podia nutrir alguma esperança de que seu trabalho fora bem feito. Incrivelmente, no décimo dia- sim, no décimo dia – o fígado dele finalmente reagia...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXX

UM INIMIGO FEROZ...


Se, por um lado, constatar que não havia ocorrido a temida "trombose da veia-porta" significava algum alento, por outro era preciso descobrir com urgência o motivo de o fígado dele ter praticamente parado de funcionar. Uma pista me fora deixada pelo Dr. Sílvio e se revelaria correta logo no início da tarde. A bateria de exames de sangue e urina confirmaram uma violenta infecção do líquido abdominal por algum microorganismo ainda não identificado. Uma infecção hospitalar. A situação era gravíssima. A segunda complicação mais temida pelos médicos nos períodos de recuperação de transplantados ou pacientes de ressecção hepática é a infecção abdominal. Não raro ela evolui para septicemia e leva ao óbito de pacientes com potencial para recuperação. Era preciso entrar imediatamente com um antibiótico potente para tentar reverter o quadro. E assim foi feito.
Enquanto a luta começava a se desencadear no organismo do pai, contra um inimigo potencialmente mortal, as funções hepáticas começaram a voltar aos níveis anteriores e logo no dia seguinte já mostravam boa recuperação. Conforme o antibiótico agia contra o microorganismo que lhe infectara as entranhas, dava uma "folga" para que a lenta recuperação do órgão seccionado tivesse prosseguimento. Mas o tempo se esgotava. 10 dias era o prazo que o Dr. Sílvio havia fixado para que se tivesse alguma esperança de "virar o jogo". No livro de estatísticas do médico, só lhe restavam cerca de 10% de chances de recuperação. Passado esse período, apontam os registros que praticamente 100% dos pacientes submetidos a esse tratamento não conseguem mais recuperar-se e caminham para o óbito.
O dia seguinte, na nossa cabeça, era o dia "D", portanto. Era o décimo dia. O último em que iríamos para o hospital com alguma esperança. Se o exame diário de sangue não demonstrasse nenhuma reação do fígado, permanecendo naqueles índices de 29 ou 30% seria hora de pensar no funeral. Era visível no semblante dos médicos o desânimo quanto ao prognóstico. A cada tentativa que fazíamos de obter uma informação, qualquer que fosse, que nos desse algum alento, só ouvíamos evasivas e coisas do tipo "tem que ter paciência, é assim mesmo..." ou "é difícil falar alguma coisa, mas o caso dele continua gravíssimo, vocês têm que se preparar para o pior..." Ou seja: ninguém mais acreditava na recuperação do pai, além de nós, que teimávamos em manter a esperança. Além de nós e de uma enfermeira que estava por ali e ouvira algumas de nossas conversas com os médicos. Quando ficamos sozinhos ao lado do leito do pai, ouvimos dela, surpreendentemente: "Não dêem bola para o que os médicos falam. Acreditem na recuperação dele. Em todos esses anos tenho visto centenas de pacientes desenganados que viveram muitos e muitos anos e viram seu próprio médico morrer antes deles..." Surpreendente por tal afirmação partir de uma enfermeira. Era algo que estávamos acostumados a ouvir. De leigos. Não de profissionais médicos. E isso só serviu para reforçar ainda mais nossa esperança.
Mas o próximo dia era decisivo. Era o 10° dia!

sábado, 30 de janeiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXIX


ERA O FIM?



O Dr. Sílvio não era médico do HCPA. Mas como tinha sido o responsável pela cirurgia, permitiam que visitasse o pai na CTI e o acompanhasse. Não sei como funcionam essas coisas, se um médico de outro hospital podia ou não acompanhar um paciente internado ali, se existe alguma legislação sobre essa prática. Mas o fato é que ele tinha trânsito livre para visitar e avaliar a evolução do pai. Obviamente, era nele que depositávamos toda a confiança, até por ser um especialista, enquanto que o HCPA deixara o pai sob cuidados de uma equipe de gastroenterologistas – correto, lógico – mas nos passava confiança saber que um especialista em fígado estava do nosso lado, acompanhando tudo.
Porém, a evolução não era boa. O órgão seccionado teimava em não reagir e por vezes dava mostras até de que poderia estar definhando. Os médicos eram unânimes num quesito: se não reagisse nos próximos dois ou três dias, o organismo se encarregaria de tomar outro rumo, levando pai inevitavelmente à morte. E houve um dia em que praticamente tivemos certeza de que seria esse o desfecho. Numa determinada manhã, o resultado dos exames de sangue diários apontaram uma queda brusca na função hepática. Os índices, que vinham se mantendo extremamente baixos, da ordem de 29 a 30%, caíram bruscamente para menos de 6%. Lembro que quando nos passaram essa informação, os médicos emendaram taxativamente: era o fim. “Preparem-se para perder vosso pai.”. Fiquei transtornado no momento. Liguei para o Dr. Sílvio e pedi que viesse até o hospital assim que fosse possível, para conversarmos, pois o pai ia ser submetido a um procedimento de ultrassonografia, para detectar alguma coisa que eu não entendera muito bem. Disse que viria assim que possível, mas não antes de pelo menos uma hora, lá pelas 11 da manhã. Entre comovido e assustado, decidi que deveria contar isso pra mãe, que ainda estava no apartamento da Marília. Esperava com isso prepará-la para o pior, sei lá. Ou talvez apenas quisesse desabafar com alguém. Liguei pra Neu e falei que preparasse a Cristina e a Gabriela para uma notícia ruim, porque naquele momento eu, de fato, entendia que os médicos já soubessem de algo muito grave que estava acontecendo com o organismo dele. Quando cheguei ao apartamento, a mãe se preparava para iniciar o almoço. Nem lembro direito como iniciei a conversa, mas quando disse ela o que estava acontecendo, ela teve uma reação que me surpreendeu e me assustou. Foi muito além do que eu esperava. Entrou em choro convulsivo e começou a se retorcer como quem tem um ataque epilético, enquanto repetia “não, não, não, não...”. Fiquei assustadíssimo e temi que tivesse um infarto ou coisa parecida. Corri até a cozinha e peguei um copo com água, adoçando com generosa colherada de açúcar e dei a ela, que mal conseguia segurar o copo de tanto que tremia. E comecei a amenizar a conversa, dizendo “calma, calma, pode ser que eles estejam enganados...de repente é só uma reação do organismo dele...” Até que consegui acalma-la. Pedi que ficasse tranqüila e voltei ao hospital. Lá, liguei para a Mili e pedi que viesse urgente para Porto Alegre. Ela não estava de férias, mas pedi que conseguisse uma licença no trabalho, pois era urgente. Eu precisava de alguém mais para dar conta da mãe. Temia pela saúde dela e por momentos me imaginava perdendo os dois, ficando “órfão” de ambos. Foi terrível. Foram momentos desesperadores.
Encontrei o Dr. Sílvio próximo ao elevador, na portaria. Subimos juntos. Eu o indagava sobre o que poderia ter acontecido. Segundo ele, a suspeita agora era de que pudesse ter havido uma trombose da veia porta. Ou seja, um coágulo poderia ter se desprendido da cirurgia e entupido a principal veia do fígado, aquela que carrega o sangue para ser filtrado. E era realmente fatal. Fosse isso o ocorrido e não haveria o que fazer. Em poucos dias o pai começaria a definhar, indo até a insuficiência hepática total e a falência múltipla de órgãos. Era a morte.
O exame apontaria isso. E ficamos na expectativa, na saída da sala de ultrassom.
De repente a maca surgiu, o pai acordado, olhando para o teto. Rapidamente as enfermeiras o conduziram de volta ao leito. Da porta da sala saiu então um médico e o Dr. Sílvio foi até ele. Conversaram. O médico balançou a cabeça negativamente. Senti um calafrio. “Foi mal”, imaginei. Imediatamente as imagens que vieram à minha mente envolviam um caixão, velório, missa, enterro... Era o fim do meu pai...
O Dr. Sílvio caminhou sério em minha direção e arrisquei perguntar: “E então, Dr. Sílvio???” “Bem”, respondeu ele, naquele seu tom calmo e direto de sempre, “menos mal...” “Como assim??” – perguntei - “não é trombose da veia porta”, respondeu como se também estivesse aliviado. “Agora vem a segunda parte: temos que descobrir o motivo pelo qual o fígado dele praticamente parou de funcionar...” Senti um certo alívio nas palavras dele... “Então, dá pra ter esperança, ainda, Dr. Sílvio?” – perguntei entre aflito e feliz. “Sem dúvida, mas temos que fazer ainda outros exames...”
Foi demais.
A situação ainda era gravíssima, mas eu tive uma sensação tão boa naquele momento que passei a acreditar definitivamente que algo de bom estava para acontecer.
Imediatamente fui até o apartamento e dei a notícia para a mãe. Serenamente, ela me levou até o quarto onde dormia e apontou para um livro na cabeceira. Era um livro de orações, nem lembro de que santo. “Eu rezei para a irmã Anastasie”, ela disse. Pra quem não sabe, a irmã Anastasie era uma freira de Paim Filho que havia morrido há alguns meses. Era uma pessoa fantástica, daquelas que só sabem ajudar aos outros, aconselhar, fazer o bem, enfim. E a mãe a admirava muito, a ponto de considerá-la santa.
“A irmã Anastasie vai nos ajudar. Ele vai se recuperar. Acreditem. Eu tenho certeza.”
Àquela altura, tudo o que significasse esperança era bem vindo. E naquele momento eu também acreditei
!