sexta-feira, 19 de março de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...


PARTE XXXII


A ENCEFALOPATIA




A partir do momento em que os médicos perceberam a primeira reação do fígado do pai, após 10 dias de puro ceticismo quanto às possibilidades de recuperação, passaram a dedicar ainda mais atenção ao seu caso. Continuaram ministrando antibióticos cada vez mais fortes, na tentativa de debelar a infecção, que agora representava o maior risco à sua sobrevivência. Mas principalmente, ao que parece, passaram a acreditar que era possível salvá-lo e permitir que sobrevivesse por mais alguns anos. Ficamos sabendo, tempos depois, com o pai já recuperado, que os médicos do HCPA travaram uma luta muito grande com o coordenador de distribuição de medicamentos do SUS, que num dado momento passou a questionar o uso de um antibiótico tão caro (coisa de quase R$ 1.000,00 por frasco) naquele paciente, que afinal de contas passava dos 60 anos de idade e tinha reduzidas chances de sobrevida. Mas uma vida é uma vida. E todo médico traz em si, no mais íntimo de sua vocação, a certeza de que sua missão é preservá-la, enquanto houver um fio de esperança. Era o caso. Ainda mais agora, que surgia uma tênue luzinha no final do túnel...

* * * *

Enquanto o medicamento agia, o fígado lutava para realizar suas funções de filtragem no organismo dele. Mas a insuficiência hepática oscilava e havia dias em que os exames recuavam bastante. E então o principal efeito colateral se manifestava: a encefalopatia. Esse distúrbio mental costuma acometer quem tem o fígado comprometido por alguma enfermidade mais grave ou pelo alcoolismo e manifesta-se com confusão mental, alucinações, desorientação.
Em meio a tanto sofrimento na espera da recuperação dele, nos deparamos com algumas situações muito engraçadas, que aliviavam um pouco o peso da espera.
Lembro que certa manhã (ou tarde) eu cheguei próximo ao leito e perguntei como ele estava se sentindo.
- Não estou muito contente... – respondeu com cara amarrada, como se estivesse bravo com alguma coisa.
- O que houve pai, não estão te tratando bem aqui?
- Nem sempre...
- Como assim? – indaguei surpreso.
- Veja bem, - disse ele- o que os demais pacientes dessa ala tem de diferente de mim? As enfermeiras dão coisas pra eles que pra mim não dão...
- O quê por exemplo, pai? – insisti.
- Ora, o Chopp!!!
Não me contive e desatei a rir.
- Chopp, pai? Que chopp é esse? Aqui no hospital? Ora essa...
E então ele apontou com o dedo. Sobre o balcão à nossa frente havia alguns frascos contendo soro fisiológico, medicamentos, água.
Convenhamos, confundir um frasco de soro com um copo de chopp não é algo assim tão natural... Quando contei isso à mãe e aos meus irmãos, foi uma risada só. E eu pensava comigo: “quando tudo isso acabar, vamos rir muito, junto com ele, lembrando de suas alucinações...”

* * * *

A comida que lhe serviam por via oral, tentando aos poucos retirar a sonda, tinha que ser cuidadosamente preparada. Era à base de cremes pastosos, porém sem sal, sem qualquer tipo de tempero. Devia ser gostosíssima... E não conseguíamos fazer com que comesse mais do que duas ou três colheradas. Ficávamos contentes quando conseguia ingerir pequenas porções a mais.
Num desses dias, após fazê-lo comer algumas colheradas de um creme verde, que devia ser à base de espinafre, ousei perguntar:
- E aí, véio, gostou?
- Mas “bah” – disse ele – é “súgulo”!
E de novo desatei a rir.
Súgulo é o nome de um creme preparado com suco de uva, açúcar e maisena, muito conhecido da colônia italiana, mas que hoje quase não se ouve mais falar. Em sua infância, deve ter sido a sua sobremesa mais freqüente. E agora seu cérebro rebuscava essas lembranças e confundia-lhe o paladar.
Foi realmente hilário... e de novo nos divertimos, entre preocupados e esperançosos de que o distúrbio logo passasse...

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