PARTE VII
AGORA, A RESPONSABILIDADE
Chegamos em Paim Filho por volta das 3 horas da tarde. O pai já estava normal e nem parecia tão preocupado com o diagnóstico. Não sei se ele apenas tentava dissimular para não preocupar ninguém ou se, de fato, havia se convencido de que a cirurgia seria a cura definitiva, que haveria de vir em breve. O fato é que não via mais nos seus olhos aquela preocupação de antes, quando estávamos cheios de dúvidas quanto à sua condição.
A mãe nos aguardava na farmácia. Vi em seu rosto a mesma aflição dos últimos dias. Ansiava por alguma notícia positiva, mesmo diante da iminência de um resultado desfavorável dos exames. Deixei que o pai atravessasse a porta que levava ao interior da casa e certifiquei-me de que ele tivesse entrado no banheiro. Só então chamei a mãe para uma conversa. Não escondi nada. Achei que ela deveria saber de tudo. Achei que assim ela se prepararia melhor para os momentos de sofrimento que fatalmente viriam. Nossa família não estava acostumada com o sofrimento. Éramos felizes. Festejávamos aos finais de semana, quando nos reuníamos em um ou outro lugar. Saboreávamos suculentos churrascos em família, enquanto colocávamos "as fofocas em dia" e ríamos muito. Às vezes discutíamos assuntos familiares e até brigávamos, vez por outra, quando os ânimos se acirravam. Mas quase sempre tudo acabava bem e quando nos despedíamos cada um rumava tranquilo para sua casa. O pai e a mãe ficavam sozinhos nos finais de tarde de domingo. E depois do cochilo tradicional, o pai rumava invariavelmente para o Clube para jogar baralho com os amigos, enquanto a mãe decorava todos os programas de todos os canais de televisão. E à noite, quase sempre eu ligava, antes do Fantástico, como que para encerrar a semana em contato com eles. Às vezes até para me desculpar por alguma besteira a mais que tivesse dito enquanto a cerveja circulava pelas artérias do meu cérebro. Mas eu acho que éramos felizes, sim. E, como eu disse, totalmente desacostumados ao sofrimento. Por isso o choque foi maior. A mãe recebeu a notícia como se um devastador terremoto acabasse de demolir tudo o que construíra ao longo de mais de 40 anos ao lado do pai. Chorou muito. Mas logo se recompôs, porque ouvira o ruido da fechadura da porta do banheiro, indicando que o pai se aproximava. Como ele rumou para o quarto, para trocar de roupa, ainda pude ouvir dela: "Mas ele não vai morrer. Nós vamos achar um jeito de curá-lo. " Naquele instante eu a tranquilizei quanto a isso. "Deixe tudo comigo, mãe" - falei -" eu conheço um monte de gente, tenho muitos amigos que com certeza vão nos ajudar. Mas você vai ter que ser muito forte. Curta ainda mais os momentos ao lado do teu marido. O caso é grave. Vamos fazer de tudo para salvá-lo ou para lhe dar o máximo de sobrevida. Mas não sabemos qual será o desfecho. Procure satisfazer as suas vontades. Abrace ele. Beije ainda mais. E lhe dê esperança. Sempre. Jamais permita que ele pense que não vai sobreviver. Estaremos do teu lado". A abracei forte e ela aninhou a cabeça entre meus braços e o meu peito. Naquele instante também os papéis se invertiam. Esse gesto era o que eu fazia quando criança ou adolescente nos momentos de aflição. Em inúmeras ocasiões eu me vi nos braços da mãe, chorando junto ao seu peito e sendo afagado e consolado. Agora a criança era ela. Ainda mais frágil, aos pedaços. Que coisa. Que nó na minha garganta. Sentia a responsabilidade aumentar ainda mais. Era comigo. Cabia a mim conduzir tudo aquilo, agora eu tinha certeza. E eu haveria de fazer o que deveria ser feito.
Despedi-me dos dois, pois ansiava por chegar em São José do Ouro, de onde pretendia fazer os necessários contatos para iniciar nossa peregrinação em busca do tratamento.
Eu não tinha o costume de beijar o pai. Só fazia isso em raras ocasiões. Normalmente lhe dava um abraço bem apertado. E só. Naquele dia, porém, além do abraço lhe dei um grande beijo na testa. E, com os olhos marejados, balbuciei um "fica tranquilo, pai, vai dar tudo certo..." Ele retribuiu com um olhar profundo, dentro dos meus olhos. Não tenho dúvidas de que ali ele enxergou o fundo da minha alma. E naquele olhar ele entendeu que o seu filho mais velho seria, durante muito tempo, o seu porto seguro.
Antes de seguir viagem, subi até a casa do Nando. Ele havia acabado de chegar. Chamei ele e nos sentamos no muro da frente. Foi o momento em que contei tudo a ele. Todos os detalhes que faltavam. Todas as minhas previsões sobre o que poderia acontecer. Ele parecia incrédulo, chocado. Olhava para o chão, ficava com os olhos vermelhos, continha-se, qustionava algumas coisas. Mas abateu-se profundamente. Era visível.
Procurei tranquilizá-lo, mesmo diante desse quadro não muito animador.
- Nando, deixem tudo comigo. Eu fiz muitos amigos nessas andanças por aí. Conheço políticos influentes, companheiros de Rotary e Lions, colegas gerentes do Banrisul. Deixem que eu encaminho tudo...
- Mas nós vamos ajudar...
- Claro, Nando, mas alguém tem que tomar a iniciativa, definir um rumo. Não adianta ficarmos abrindo várias "frentes". Temos que ficar focados. Decidir o que fazer e seguir naquele rumo.
Fez-se silêncio por alguns momentos. Ficamos olhando o vazio. Jamais esquecerei da cor do céu naquele entardecer de Novembro, enquanto fitava os lados do morro da antena.
- Nando, - interrompi de repente - temos que nos preparar para sofrer muito com isso. E vamos gastar muito dinheiro...
- Mas nós não temos dinheiro, Marco...
- Eu sei, mas daremos um jeito, daremos um jeito. Não vamos nos precipitar. Tem um plano de saúde vigente, tem o SUS... Vamos tentar por aí. Mas temos que ficar precavidos.
Entrei no carro e saí rumo a São José. Enquanto fazia o retorno, ainda pude ver o Nando entrando em casa. Fiquei com muita pena dele. A notícia o havia chocado muito. Mas meus irmãos, é lógico, tinham que saber de toda a verdade. Porque cada um acabaria tendo o seu papel dali para diante.
Enquanto o sol baixava devagar entre os morros, meu cérebro efervecia. Milhões de pensamentos por segundo borbulhavam como um caldeirão borbulha a ponto de fervura. Estava chegando o momento da definição. E eu acabara de assumir toda a responsabilidade. Agora era tudo comigo. E eu não podia falhar.
sexta-feira, 1 de maio de 2009
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