terça-feira, 28 de abril de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE VI

A VOLTA PRÁ CASA

Peguei ele pelo braço e o amparei, como se faz com um idoso debilitado. Meu Deus, ele tinha apenas 63 anos, mas parecia ter 20 anos a mais. Claro que isso não era efeito da doença recém descoberta e sim fruto do efeito dos sedativos, combinados com quase 24 horas sem se alimentar. Mas o clima de toda a situação permitia que pairasse no ar uma sensação extremamente desagradável. Poucas vezes na vida me vi tão comovido e tive que conter as lágrimas por várias vezes enquanto descia as escadas da clínica. Mas nem naquele momento me era permitido chorar. Tinha poucos minutos para levá-lo até a UNIMED. Encontrei o Clóvis Montemezzo, seu sócio da farmácia, nos aguardando ao pé da escada. Conversamos rapidamente. Ele já estava sabendo do problema e se ofereceu para nos acompanhar. Ajudou a sentar o pai no banco da frente do Corsa. O pai falava com alguma dificuldade, enrolando a língua, mas pediu dos óculos e dos documentos. Estavam comigo. Seguimos até a UNIMED. Eram 11:25 h. Conseguimos chegar em tempo. Alguém conduziu o pai até uma sala e pude ver que apoiavam o seu braço para tirar sangue. De novo me contive, pensando comigo "já não chega? Onde vai parar esse calvário do homem?". Enquanto faziam esse procedimento, que na verdade era simples, conversei alguns minutos com o Clóvis. Lembro de ter embargado a voz em vários momentos e notei que ele próprio estava impressionado com o estado em que o pai se encontrava. Mas, como eu disse, não se tratava de um efeito da doença, que aliás recém começava a dar os primeiros sintomas. Era o clima de comoção que nos rodeava, a perspectiva de enfrentarmos um problema até então inédito na família, mas que conhecíamos muito bem de amigos e conhecidos nossos. Era isso que nos deixava morrendo de pena daquela figura adorada por todo mundo e que agora parecia estar rumando para um período de grande sofrimento físico e principalmente psicológico. Afinal, um diagnóstico de câncer traz consigo esses dois componentes. É inevitável. Mesmo com todos os avanços da medicina essa doença aterroriza e, pior, mata muito ainda. E alguém como ele, que trabalhava na área da saúde há 49 anos, haveria de saber disso. Eu previa, de fato, muito sofrimento para ele, para a mãe, para todos nós.
Saímos da UNIMED ao meio-dia. Agradecemos o convite do Clóvis para almoçar em sua casa. Na verdade eu já estava ansioso, àquela altura, para chegar em casa, ligar para o médico, marcar a cirurgia para aquela noite ainda, se fosse possível!
Aos poucos, notei que os medicamentos começavam a perder o efeito e o pai começava a voltar ao normal. Pedi se estava sentindo dor. Disse que não, que sentia muita fome. Já imaginei que poderia deixá-lo feliz se falasse o que iríamos comer.
- Que tal um pastel com refri, pai?
Nem precisava responder. Ele adorava pastel. Era o seu caviar. Em qualquer lugar que fôssemos com ele e que chegássemos à hora do lanche, já sabíamos o que seria pedido na lanchonete. Às vezes ele saía da farmácia e ía até o Clube só prá comer um pastel. E bebericar uma cachacinha, ou um vinhote (que ninguém é de ferro), claro. Muitas vezes pedia prá mãe fazer pastel de tarde, só prá ele se deliciar comendo essa iguaria. E tinha que ser o tradicional. Aquele de guizado, com no máximo um pouco de ovo picado. E acho que herdei isso dele. Só que eu gosto de guizado com azeitona. As minhas filhas tiram sarro de mim porque eu só peço pastel quando vou a alguma lanchonete. Herdei dele, com certeza.
Paramos no pátio Master Sonda. Deixei ele esperando no carro, até porque ainda não tinha condições de caminhar, e fui até a praça de alimentação. Pedi dois pastéis grandes. A moça pediu "de que sabor"? "De carne, ora..." Imagina, me pedir o sabor do pastel. Pastel que se preze é de carne. Carne de gado moída. No máximo com ovo cozido picado. "O meu com azeitona"...ainda gritei prá ela, enquanto a via esticar a massa.
Quando voltei ao carro, com dois enormes pastéis e duas latas de coca-cola, o pai meteu o olho no pacote. Notei que já estava bem melhor. Praticamente normal. Sugeri que não comêssemos alí no pátio.
- Pai, vamos seguir viagem. No caminho a gente encontra alguma entradinha, numa sombra, e comemos tranquilos. Dá prá degustar melhor. Você aguenta ou a fome está incontrolável?
- Na verdade estou com vontade de morder a coca-cola... - respondeu brincando -...mas dá prá aguentar, sim. Vamos indo.
No caminho, fomos conversando. Me questionou bastante sobre os exames, sobre a doença. Queria saber o que o Dr. Paulo havia falado. Queria ouvir sobre a gravidade da doença, sobre suas chances de cura, sobre qual seria o próximo passo.
Achei que ainda não era ora de falar na palavra "câncer". Tratei sempre como sendo uma "tumoração" das células hepáticas - um nódulo que havia se formado, que era de natureza maligna e que deveria ser retirado por cirurgia, sim, porque havia o risco de comprometer todo o fígado e, nesse caso, até levá-lo à morte. Mas também lhe falei aquela história da árvore, que o Dr. Paulo me explicou. E confesso que enquanto conversava com ele eu próprio fui criando uma expectativa mais positiva e comecei a vislumbrar uma luz no fim do túnel. Era preciso que eu acreditasse. Que ele acreditasse. E, acreditando, haveríamos de sair dessa, quem sabe.
Foram os primeiros momentos de relativa tranquilidade que passei com ele desde a primeira notícia, naquele dia em que o Dr. Paulo me informara do tumor recém descoberto.
Encontramos uma bela sombra.
Estacionei o Corsa debaixo de uma árvore, abri as duas portas do lado do caroneiro e ali degustamos nosso lanche. Poucas vezes o vi comer um pastel com tanta voracidade. Estava faminto, coitado. Eu olhava prá ele, como que antecipando tudo o que viria pela frente e me comovia. Era difícil sentir que os papéis se invertiam. Ele, a fortaleza, o super-homem, o meu herói de sempre, agora parecia dependente de mim ao extremo. Agora era eu que deveria ser a sua fortaleza. E isso me assustava. Mas não me intimidava. Se tinha que ser, seria.
Seguimos viagem. Ele cochilou em alguns momentos, mas a maior parte do tempo seguiu fazendo as suas costumeiras gracinhas com tudo o que via pelo caminho. E enquanto as árvores e os automóveis passavam por nós, conversamos muito. Como talvez nunca tivéssemos parado para conversar...

Nenhum comentário:

Postar um comentário