PARTE VI
A VOLTA PRÁ CASA
Peguei ele pelo braço e o amparei, como se faz com um idoso debilitado. Meu Deus, ele tinha apenas 63 anos, mas parecia ter 20 anos a mais. Claro que isso não era efeito da doença recém descoberta e sim fruto do efeito dos sedativos, combinados com quase 24 horas sem se alimentar. Mas o clima de toda a situação permitia que pairasse no ar uma sensação extremamente desagradável. Poucas vezes na vida me vi tão comovido e tive que conter as lágrimas por várias vezes enquanto descia as escadas da clínica. Mas nem naquele momento me era permitido chorar. Tinha poucos minutos para levá-lo até a UNIMED. Encontrei o Clóvis Montemezzo, seu sócio da farmácia, nos aguardando ao pé da escada. Conversamos rapidamente. Ele já estava sabendo do problema e se ofereceu para nos acompanhar. Ajudou a sentar o pai no banco da frente do Corsa. O pai falava com alguma dificuldade, enrolando a língua, mas pediu dos óculos e dos documentos. Estavam comigo. Seguimos até a UNIMED. Eram 11:25 h. Conseguimos chegar em tempo. Alguém conduziu o pai até uma sala e pude ver que apoiavam o seu braço para tirar sangue. De novo me contive, pensando comigo "já não chega? Onde vai parar esse calvário do homem?". Enquanto faziam esse procedimento, que na verdade era simples, conversei alguns minutos com o Clóvis. Lembro de ter embargado a voz em vários momentos e notei que ele próprio estava impressionado com o estado em que o pai se encontrava. Mas, como eu disse, não se tratava de um efeito da doença, que aliás recém começava a dar os primeiros sintomas. Era o clima de comoção que nos rodeava, a perspectiva de enfrentarmos um problema até então inédito na família, mas que conhecíamos muito bem de amigos e conhecidos nossos. Era isso que nos deixava morrendo de pena daquela figura adorada por todo mundo e que agora parecia estar rumando para um período de grande sofrimento físico e principalmente psicológico. Afinal, um diagnóstico de câncer traz consigo esses dois componentes. É inevitável. Mesmo com todos os avanços da medicina essa doença aterroriza e, pior, mata muito ainda. E alguém como ele, que trabalhava na área da saúde há 49 anos, haveria de saber disso. Eu previa, de fato, muito sofrimento para ele, para a mãe, para todos nós.
Saímos da UNIMED ao meio-dia. Agradecemos o convite do Clóvis para almoçar em sua casa. Na verdade eu já estava ansioso, àquela altura, para chegar em casa, ligar para o médico, marcar a cirurgia para aquela noite ainda, se fosse possível!
Aos poucos, notei que os medicamentos começavam a perder o efeito e o pai começava a voltar ao normal. Pedi se estava sentindo dor. Disse que não, que sentia muita fome. Já imaginei que poderia deixá-lo feliz se falasse o que iríamos comer.
- Que tal um pastel com refri, pai?
Nem precisava responder. Ele adorava pastel. Era o seu caviar. Em qualquer lugar que fôssemos com ele e que chegássemos à hora do lanche, já sabíamos o que seria pedido na lanchonete. Às vezes ele saía da farmácia e ía até o Clube só prá comer um pastel. E bebericar uma cachacinha, ou um vinhote (que ninguém é de ferro), claro. Muitas vezes pedia prá mãe fazer pastel de tarde, só prá ele se deliciar comendo essa iguaria. E tinha que ser o tradicional. Aquele de guizado, com no máximo um pouco de ovo picado. E acho que herdei isso dele. Só que eu gosto de guizado com azeitona. As minhas filhas tiram sarro de mim porque eu só peço pastel quando vou a alguma lanchonete. Herdei dele, com certeza.
Paramos no pátio Master Sonda. Deixei ele esperando no carro, até porque ainda não tinha condições de caminhar, e fui até a praça de alimentação. Pedi dois pastéis grandes. A moça pediu "de que sabor"? "De carne, ora..." Imagina, me pedir o sabor do pastel. Pastel que se preze é de carne. Carne de gado moída. No máximo com ovo cozido picado. "O meu com azeitona"...ainda gritei prá ela, enquanto a via esticar a massa.
Quando voltei ao carro, com dois enormes pastéis e duas latas de coca-cola, o pai meteu o olho no pacote. Notei que já estava bem melhor. Praticamente normal. Sugeri que não comêssemos alí no pátio.
- Pai, vamos seguir viagem. No caminho a gente encontra alguma entradinha, numa sombra, e comemos tranquilos. Dá prá degustar melhor. Você aguenta ou a fome está incontrolável?
- Na verdade estou com vontade de morder a coca-cola... - respondeu brincando -...mas dá prá aguentar, sim. Vamos indo.
No caminho, fomos conversando. Me questionou bastante sobre os exames, sobre a doença. Queria saber o que o Dr. Paulo havia falado. Queria ouvir sobre a gravidade da doença, sobre suas chances de cura, sobre qual seria o próximo passo.
Achei que ainda não era ora de falar na palavra "câncer". Tratei sempre como sendo uma "tumoração" das células hepáticas - um nódulo que havia se formado, que era de natureza maligna e que deveria ser retirado por cirurgia, sim, porque havia o risco de comprometer todo o fígado e, nesse caso, até levá-lo à morte. Mas também lhe falei aquela história da árvore, que o Dr. Paulo me explicou. E confesso que enquanto conversava com ele eu próprio fui criando uma expectativa mais positiva e comecei a vislumbrar uma luz no fim do túnel. Era preciso que eu acreditasse. Que ele acreditasse. E, acreditando, haveríamos de sair dessa, quem sabe.
Foram os primeiros momentos de relativa tranquilidade que passei com ele desde a primeira notícia, naquele dia em que o Dr. Paulo me informara do tumor recém descoberto.
Encontramos uma bela sombra.
Estacionei o Corsa debaixo de uma árvore, abri as duas portas do lado do caroneiro e ali degustamos nosso lanche. Poucas vezes o vi comer um pastel com tanta voracidade. Estava faminto, coitado. Eu olhava prá ele, como que antecipando tudo o que viria pela frente e me comovia. Era difícil sentir que os papéis se invertiam. Ele, a fortaleza, o super-homem, o meu herói de sempre, agora parecia dependente de mim ao extremo. Agora era eu que deveria ser a sua fortaleza. E isso me assustava. Mas não me intimidava. Se tinha que ser, seria.
Seguimos viagem. Ele cochilou em alguns momentos, mas a maior parte do tempo seguiu fazendo as suas costumeiras gracinhas com tudo o que via pelo caminho. E enquanto as árvores e os automóveis passavam por nós, conversamos muito. Como talvez nunca tivéssemos parado para conversar...
terça-feira, 28 de abril de 2009
sábado, 25 de abril de 2009
PARABÉNS, PAI...ONDE ESTIVER!
25 DE ABRIL SERÁ SEMPRE UMA DATA INESQUECÍVEL
Pai,
Hoje você estaria completando 67 anos. É a primeira vez nesses 45 anos de minha vida que você não estará conosco prá comemorar, com aquele belo churrasco que costumávamos fazer, com ou sem a presença dos amigos, quando relembrávamos fatos passados, contávamos muitas piadas, falávamos do Grêmio...e ríamos muito. Mesmo depois que você ficou doente, nunca deixamos de festejar.Afinal, era mais um ano que você estava com a gente.
Engraçado pai, lembra quantas e quantas vezes eu brinquei contigo dizendo que esperava que você fosse aquele que iria contrariar a tendência dos Arsego de morrer antes dos 68 anos? E lembra que você sempre me respondia que se sentia "um jovem sexagenário"?
Mas não deu. A vida quis seguir seu curso e seguiu também essa maldita tradição. Teu pai morreu aos 68, teu irmão aos 67, tua irmã com pouco mais de 50... Eu, de fato, sonhava em te ver velhinho, ficava imaginando ver você caminhando com dificuldade, de bengala, perambulando pelas ruas de Paim Filho nas manhãs geladas de inverno em busca dos raios de sol prá se aquecer. Sonhava em te ver com 80, 90 anos quem sabe... E poder desfrutar um pouco mais da tua bondade, da tua alegria, do teu desapego aos bens materiais, da tua honestidade, das tuas lições de humildade, do teu amor pela família que construiu...
Mas valeu!
Quando a natureza diz que acabou, não adianta brigar com ela.
Teu corpo não resistiu, mas tua alma será eterna, isso é fato.
Parabéns pai!
Devem ter preparado um bolo de aniversário prá você aí encima, pois todo mundo te adorava. Pois corte-o e dê a primeira fatia para Jesus, que está aí do teu lado. Tenho certeza que ele dirá: "Bernardo, teu eterno presente de aniversário é este paraíso, que você conquistou"!
Um beijo no coração dessa tua alma branca e imensamente pura!
Pai,
Hoje você estaria completando 67 anos. É a primeira vez nesses 45 anos de minha vida que você não estará conosco prá comemorar, com aquele belo churrasco que costumávamos fazer, com ou sem a presença dos amigos, quando relembrávamos fatos passados, contávamos muitas piadas, falávamos do Grêmio...e ríamos muito. Mesmo depois que você ficou doente, nunca deixamos de festejar.Afinal, era mais um ano que você estava com a gente.
Engraçado pai, lembra quantas e quantas vezes eu brinquei contigo dizendo que esperava que você fosse aquele que iria contrariar a tendência dos Arsego de morrer antes dos 68 anos? E lembra que você sempre me respondia que se sentia "um jovem sexagenário"?
Mas não deu. A vida quis seguir seu curso e seguiu também essa maldita tradição. Teu pai morreu aos 68, teu irmão aos 67, tua irmã com pouco mais de 50... Eu, de fato, sonhava em te ver velhinho, ficava imaginando ver você caminhando com dificuldade, de bengala, perambulando pelas ruas de Paim Filho nas manhãs geladas de inverno em busca dos raios de sol prá se aquecer. Sonhava em te ver com 80, 90 anos quem sabe... E poder desfrutar um pouco mais da tua bondade, da tua alegria, do teu desapego aos bens materiais, da tua honestidade, das tuas lições de humildade, do teu amor pela família que construiu...
Mas valeu!
Quando a natureza diz que acabou, não adianta brigar com ela.
Teu corpo não resistiu, mas tua alma será eterna, isso é fato.
Parabéns pai!
Devem ter preparado um bolo de aniversário prá você aí encima, pois todo mundo te adorava. Pois corte-o e dê a primeira fatia para Jesus, que está aí do teu lado. Tenho certeza que ele dirá: "Bernardo, teu eterno presente de aniversário é este paraíso, que você conquistou"!
Um beijo no coração dessa tua alma branca e imensamente pura!
domingo, 19 de abril de 2009
NO NATAL, ELE SE FOI...
PARTE V
UM DOS PIORES MOMENTOS
UM DOS PIORES MOMENTOS
Chegamos pontualmente às 9 horas da manhã. Estava tudo preparado. A secretária do Dr. Paulo nos recebeu. Preenchemos alguns papéis e o pai foi conduzido até uma sala, onde seria realizado o exame. Ele parecia tranquilo. Eu tentava disfarçar o nervosismo e a comoção. Durante toda a viagem desde Paim Filho eu havia tentado "dissimular", fazendo graça da condição dele após tomar litros de laxante. E tentando animá-lo, dizendo que nem tudo estava perdido, que os tratamentos haviam evoluído muito, que um diagnóstico de tumor não significava necessariamente uma sentença de morte, que o Dr. Paulo era um ótimo profissional... mas no fundo eu sentia que estava diante de um "paciente terminal". A internet havia me dado essa certeza. Câncer de fígado tem pronóstico muito ruim. A sobrevida é curta. Quem tem a sorte de obter um transplante ainda consegue uma esperança maior. Claro que eu pensava nisso e tudo estava muito confuso ainda, mas eu sempre tive "os pés no chão" e nunca tive o hábito de alimentar sonhos. Sou extremamente objetivo e direto. Às vezes sofro com isso. Não me permitir sonhar, divagar, criar auto-ilusões por vezes me torna meio "automático" demais. Por outro lado, me dá o combustível necessário para tomar decisões rápidas, concretas, diretas, objetivas...E me parecia que o momento exigia isso. Quem sabe, se não tivesse essa característica, talvez eu tivesse deixado que algum dos meus irmãos ou até a minha mãe tivesse tomado a iniciativa de encaminhar toda a situação. Mas, não! Eu tenho isso dentro de mim. Tudo parece ser minha responsabilidade. Parece que eu sou responsável por tudo o que acontece no mundo. Está em mim ser o "puxador" de tudo o que se me apresenta como problema ou desafio. E assim se fez, mais uma vez.
Enquanto eu folheava nervosamente uma revista Veja de 2 anos atrás( todos os consultórios tem revistas Veja de 2 anos atrás), meu pai era submetido àquele horrivel exame. Um tubo com uma microcâmera é introduzido por via anal e percorre todo o intestino grosso em busca de pólipos, sangramentos ou pequenos tumores. Era o que estava sendo pesquisado. Normalmente os tumores de fígado são metástases de câncer intestinal. Se fosse esse o diagnóstico, era mesmo a senteça de morte do pai. Como sobreviveria a um câncer intestinal com metástase no fígado de 8 cm? Sem dúvida, em menos de 6 meses estaria morto. E isso me derrubava. Até poucos dias atrás meu pai era um homem forte, um líder na comunidade painfilhense, amado por toda a família e por toda a comunidade. Num instante, porém, o médico poderia estar me dizendo que era o fim dele...
Fui chamado até uma sala próxima. Lá estava o Dr. Paulo.
Antes de entrar, olhei para o lado e pude ver o meu pai em uma cadeira de rodas, semi-nu, coberto com um lençol verde-claro, de olhos fechados. O Dr. Paulo deve ter percebido que eu estava impressionado:
- Ele está dormindo, agora. Foi dado um forte sedativo, porque o exame é um tanto desagradável...
- E então? - perguntei, num misto de desânimo e esperança que nem sei explicar.
- Primeiro a boa notícia - disse o Doutor, demonstrando alguma tranquilidade - O intestino dele está limpo. Isso significa que o que ele tem no fígado é um tumor hepático, originários das células do próprio fígado, ou seja, um tumor específico do fígado, chamado heptacoracinoma...
- Isso significa que ele tem chance?...
- Bem, vamos com calma. - pegou um bloco de anotoações - O que o Bernardo tem é um tumor que tomou todo o lado direito do fígado dele. Menos mal...
- Menos mal?...
- Sim - continuou- menos mal porque não atinge as artérias, que estão no lado esquerdo. É como se, em uma árvore, o tumor atingisse as folhas e parte dos galhos, mas não o tronco e as raízes...
- E o que isso significa, Dr Paulo? - perguntei aflito.
- Significa que uma cirurgia pode dar uma sobrevida a ele. Com um pouco de sorte, se o tumor for erradicado e não surgirem novos nódulos, ele pode ficar curado. Ou sobreviver por um tempo relativamente longo. Mas não vamos criar expectativas. Ele precisa fazer mais dois exames para confirmar a natureza das células malignas. Vou encaminhar vocês para um médico em Passo Fundo, o Dr. Paulo Richert, que é um especialista nesse tipo de situação e vamos ver o que pode ser feito...
- Então dá prá ter esperança, Dr. Paulo?
- Calor que sim, claro que sim... A medicina está aí para isso: dar esperança.
Acho que meus olhos brilharam, naquele momento. Saí com um papel assinado por ele, que encaminhava o pai para o médico em Passo Fundo.
Esperei pelo pai durante alguns minutos. Insisti com a secretária que precisávamos fazer um exame na Unimed e já eram 11:15 da manhã.
Em alguns segundos ela voltou acompanhando o pai. Meu Deus. Senti um golpe no peito. Ele estava desorientado, vinha amparado por ela, curvado, parecia um velho de 90 anos.
Peguei ele pela mão e saí do consultório. Foi um dos momentos mais tristes que eu já vivi na minha vida. O meu homem forte, aquele que era o meu herói há mais de 40 anos, aquele que eu jamais havia visto derramar uma única lágrima, a fortaleza à qual eu recorria nos meus momentos de aflição, agora estava ao meu lado fraco, debilitado, cabisbaixo, tonto, desorientado...Meu Deus, que momento terrível. Talvez tenha sido o pior de todos os momentos dessa terrível aventura que eu vivi... Tive que ser muito, muito forte.
sexta-feira, 10 de abril de 2009
NO NATAL, ELE SE FOI...
PARTE IV
VIAJAMOS A EREXIM - UMA ODISSÉIA...
Na verdade eu estava morrendo de pena do meu pai. Tentava esconder de todas as formas a real gravidade da doença, utilizando-me de subterfúgios que em outros momentos jamais o convenceriam. Mas, como eu já disse, o cérebro da gente parece ser dotado de uma defesa natural contra isso. Talvez ele sempre soubesse que estava condenado, mas parecia acreditar em tudo o que eu dizia. E também por isso ele passou a se apegar cada vez mais em mim. Como eu lhe passava impressões positivas, tomava as iniciativas e o acompanhava em todos os procedimentos médicos e exames, passei a ser uma espécie de rocha onde ele depositava todas as suas mais íntimas expectativas. De certa forma, ficou totalmente dependente de mim em seu drama pessoal. É claro que o carinho dos meus irmãos e de minha mãe tornaram-se imprescindíveis. Todos passamos a mover nossa atenção para desenrolar dos fatos, mas como eu tomara a frente, todos ficaram na expectativa e prontos para ajudar quando fossem instados. A esta altura já havíamos comunicado a toda a família e a comoção era geral. Lembro que o primeiro dos tios a saber foi o Luiz Bavaresco. Liguei pra ele logo depois de obter a confirmação do diagnóstico. Depois liguei pra Caxias do Sul e informei ao Kuty, pois não tinha coragem de contar diretamente para a tia Maria. Nem lembro como a notícia chegou à tia Marilene.
Mas vamos à viagem.
Naquela manhã, acordei muito cedo. Dormi mal. A consulta estava marcada para as 9 horas e eu havia decidido buscar ele em Paim Filho e fazer o trajeto até Erexim indo por Tapejara, o que aumentava em quase 100 Km a viagem. Mas era asfalto. Meu carro era novo, não tinha mais do que 10.000Km e colocá-lo para rodar naquele trecho estupidamente horrível de 28 Km entre Maximiliano de Almeida e Pinhalzinho era uma tortura. De modo que eu precisava estar em Paim às 6 horas da manhã. Às quatro eu estava de pé. Tomei um café forte e peguei a estrada. Deixei a Neu e a Gabi dormindo e me despedi com um beijo. A Neu me pediu calma e que ligasse informando do andamento.
De certa forma eu estava tranqüilo. Precisava estar. Eu tinha que passar otimismo tanto para ele quanto para a mãe. Durante a viagem até Paim, meditei muito sobre como conduzir as conversas com eles, escolhi palavras e frases.
Cheguei lá às 5:40 h. Soube que estavam de pé desde as 3 da madrugada. O pai não havia conseguido dormir. O laxante era mesmo muito potente. Passara a noite sentado no vaso sanitário. Voltava para a cama, deitava, quinze minutos depois ouvia-se estrondos magníficos vindos do banheiro...
Prevendo o que ia acontecer durante a viagem, pedi que levasse junto um rolo de papel higiênico.
Enquanto ele ia ao banheiro uma última vez, sobrou um espaço para conversar sozinho com a mãe. Foi neste momento que eu lhe contei toda a verdade. Chorou muito. Acho que ela já sabia que sua vida estava para sofrer um terrível abalo, que boba ela não era. Porém, com a cabeça no meu ombro, ela afirmou categoricamente que acreditava que o pai sairia dessa, que ele era um homem forte e que iria vencer a doença. Rapidamente se recompôs. O pai saía do banheiro e precisávamos seguir viagem.
Entre Paim Filho e São João da Urtiga paramos duas vezes. Os abrigos de espera dos ônibus tornaram-se o seu WC, pois não dava pra parar no meio do asfalto sem acostamento. E aos poucos ele descarregava o intestino nas patentes improvisadas. Ríamos muito com a situação e por alguns momentos conseguíamos esquecer do drama que nos esperava.
Nos quilômetros seguintes foram várias paradas. Em Tapejara paramos num posto de gasolina. Em Coxilha também. E daí para frente ele agüentou firme. Estava pronto para o desagradável exame.
VIAJAMOS A EREXIM - UMA ODISSÉIA...
Na verdade eu estava morrendo de pena do meu pai. Tentava esconder de todas as formas a real gravidade da doença, utilizando-me de subterfúgios que em outros momentos jamais o convenceriam. Mas, como eu já disse, o cérebro da gente parece ser dotado de uma defesa natural contra isso. Talvez ele sempre soubesse que estava condenado, mas parecia acreditar em tudo o que eu dizia. E também por isso ele passou a se apegar cada vez mais em mim. Como eu lhe passava impressões positivas, tomava as iniciativas e o acompanhava em todos os procedimentos médicos e exames, passei a ser uma espécie de rocha onde ele depositava todas as suas mais íntimas expectativas. De certa forma, ficou totalmente dependente de mim em seu drama pessoal. É claro que o carinho dos meus irmãos e de minha mãe tornaram-se imprescindíveis. Todos passamos a mover nossa atenção para desenrolar dos fatos, mas como eu tomara a frente, todos ficaram na expectativa e prontos para ajudar quando fossem instados. A esta altura já havíamos comunicado a toda a família e a comoção era geral. Lembro que o primeiro dos tios a saber foi o Luiz Bavaresco. Liguei pra ele logo depois de obter a confirmação do diagnóstico. Depois liguei pra Caxias do Sul e informei ao Kuty, pois não tinha coragem de contar diretamente para a tia Maria. Nem lembro como a notícia chegou à tia Marilene.
Mas vamos à viagem.
Naquela manhã, acordei muito cedo. Dormi mal. A consulta estava marcada para as 9 horas e eu havia decidido buscar ele em Paim Filho e fazer o trajeto até Erexim indo por Tapejara, o que aumentava em quase 100 Km a viagem. Mas era asfalto. Meu carro era novo, não tinha mais do que 10.000Km e colocá-lo para rodar naquele trecho estupidamente horrível de 28 Km entre Maximiliano de Almeida e Pinhalzinho era uma tortura. De modo que eu precisava estar em Paim às 6 horas da manhã. Às quatro eu estava de pé. Tomei um café forte e peguei a estrada. Deixei a Neu e a Gabi dormindo e me despedi com um beijo. A Neu me pediu calma e que ligasse informando do andamento.
De certa forma eu estava tranqüilo. Precisava estar. Eu tinha que passar otimismo tanto para ele quanto para a mãe. Durante a viagem até Paim, meditei muito sobre como conduzir as conversas com eles, escolhi palavras e frases.
Cheguei lá às 5:40 h. Soube que estavam de pé desde as 3 da madrugada. O pai não havia conseguido dormir. O laxante era mesmo muito potente. Passara a noite sentado no vaso sanitário. Voltava para a cama, deitava, quinze minutos depois ouvia-se estrondos magníficos vindos do banheiro...
Prevendo o que ia acontecer durante a viagem, pedi que levasse junto um rolo de papel higiênico.
Enquanto ele ia ao banheiro uma última vez, sobrou um espaço para conversar sozinho com a mãe. Foi neste momento que eu lhe contei toda a verdade. Chorou muito. Acho que ela já sabia que sua vida estava para sofrer um terrível abalo, que boba ela não era. Porém, com a cabeça no meu ombro, ela afirmou categoricamente que acreditava que o pai sairia dessa, que ele era um homem forte e que iria vencer a doença. Rapidamente se recompôs. O pai saía do banheiro e precisávamos seguir viagem.
Entre Paim Filho e São João da Urtiga paramos duas vezes. Os abrigos de espera dos ônibus tornaram-se o seu WC, pois não dava pra parar no meio do asfalto sem acostamento. E aos poucos ele descarregava o intestino nas patentes improvisadas. Ríamos muito com a situação e por alguns momentos conseguíamos esquecer do drama que nos esperava.
Nos quilômetros seguintes foram várias paradas. Em Tapejara paramos num posto de gasolina. Em Coxilha também. E daí para frente ele agüentou firme. Estava pronto para o desagradável exame.
domingo, 5 de abril de 2009
NO NATAL, ELE SE FOI...
PARTE III
ACENTUA-SE O DRAMA...
ACENTUA-SE O DRAMA...
Tentei não lembrar do assunto até que recebêssemos o resultado. Vai que não fosse maligno e um simples acompanhamento fosse o suficiente...Quem sabe não passasse de um tumor benigno que nem precisasse de tratamento...
Segunda-Feira. Dia normal. Como de praxe, saí um pouco mais cedo do trabalho, pois era dia de treino de futsal. Vesti o fardamento, peguei o carro e saí em direção ao ginásio. Tocou o celular. Era o Dr. Paulo.
- Marco, saiu o resultado da biópsia...
- Ué, mas não seria quarta...
- Sim, -interrompeu- mas já saiu. E deu "maligno".
Emudeci. Mas continuei ouvindo. Um calafrio percorreu minha espinha e gotas de suor começaram a verter da testa, de modo que em questão de segundos, enquanto o Dr. Paulo continuava, minha camisa empapou, como seu eu estivesse em pleno jogo de futebol.
-...e assim - prosseguiu ele- preciso que você traga o Bernardo amanhã à minha clínica. Precisamos fazer uma colonoscopia prá descartar qualquer possibilidade de tumor intestinal, porque os tumores de fígado muitas vezes são metástases da moléstia no intestino...
- Certo. Aí estaremos.
Ainda ouvi os últimos detalhes, horários. Não tinha mais condições prá jogar futebol. Dei meia-volta. Confesso que não tenho noção do que possa ter visto no trajeto de volta prá casa. Eu simplesmente flutuava. O cérebro não raciocinava, parecia estar vazio, inerte.
Subi a escada que levava ao apartamento. A Neu abriu a porta e imediatamente percebeu o estado de torpor em que eu me encontrava. Mas sua voz desencadeou o retorno da consciência.
Lembro que mal ela pronunciu um "o que houve?" e eu só consegui dizer:
- Neu, é o fim do pai!
Deitei a cabeça no seu ombro e desandei a chorar. Copiosamente. Há anos, décadas, eu não chorava convulsivamente daquele jeito. Para mim, estava dada a sentença de morte para ele. Eu não conseguia acreditar. Ele parecia mais saudável do que eu. Tinha 63 anos. Sessenta e três. Um "jovem sexagenário", como ele sempre brincava. O meu maior amigo. Aquele com quem eu primeiro dividia todas as minhas angústias e minhas conquistas. Embora gerente de Banco e com uma experiência muito maior na área financeira, cada vez que eu trocava de carro ou fazia qualquer pequeno negócio, fazia questão de pedir a sua opinião. E agora eu ouvia do médico a notícia de que o estava perdendo. Que golpe. Foi muito duro. Ainda mais por ser o primeiro ente querido mais próximo (depois dos meus avós) a ter um diagnóstico fatal como esse.
Mas a Neu me deixou chorar em seu ombro durante uns 5 minutos e depois, calmamente, começou a falar. Aos poucos o raciocínio foi voltando e fagulhas de esperança começaram a se formar. Como é o cérebro da gente. Num instante eu estava arrasado e de repente começava a pensar diferente, nas possibilidades de tratamento, que podia não ser o fim, que talvez houvesse uma saída...
Então, era hora de ligar prá ele.
Dissimuladamente repassei as instruções do Dr. Paulo. Ele fez alguns questionamentos, mas eu tive habilidade para não assustá-lo. Seria um exame de rotina, relacionado à biópsia, cujo resultado ainda não havia saído, etc. e tal... Ele teria que tomar um potentíssimo laxante, não comer nada no jantar...o intestino teria que estar "limpo" para o desagradável exame de colonoscopia. Conversaríamos durante a viagem.
Até então, só eu sabia da gravidade da doença dele. Havia ligado para a Mili e para o Digo e conversado rapidamente com o Nando. Sabiam do exame que apontara um tumor, mas não lhes havia passado o resultado da biópsia. A dúvida me assaltava. Quem deveria ser informado? A mãe? Todos os irmãos? Ele próprio? Ou devia segurar tudo comigo por mais algum tempo? Mas não, decidi que sofrer sozinho seria mais difícil. E acabei ligando prá todos eles e contando toda a verdade. A Mili chorou muito ao telefone. O Digo pareceu receber a notícia com mais tranquilidade, mas fez um monte de perguntas. O mesmo fez o Nando naquele momento. E a mãe? O que dizer a ela? Pensei no choque que seria ouvir essa notícia. Pensei na reação que teria, na sua pressão alta, no seu comportamento normalmente nervoso...Eu tinha a noite prá pensar. No dia seguinte iríamos novamente a Erexim. Seria mais uma jornada.
sexta-feira, 3 de abril de 2009
Desculpem...
Peço antecipadas desculpas aos que estão "fazendo o sacrifício" de acompanhar a minha narrativa se por vezes ela ficar repetitiva ou demasiadamente arrastada. Na verdade, estou tentando puxar do fundo da memória o máximo de detalhes que eu lembro desse meu drama pessoal. Talvez seja uma forma de desentranhar o nó que ficou na minha garganta durante todo esse tempo. Sim, um desabafo. Que eu não pude fazer ao longo dos últimos três anos. Que eu não podia fazer. Mas o turbilhão de lágrimas que eu não pude chorar talvez viesse a explodir em algum momento. Melhor então buscar o desabafo da maneira que eu melhor sei fazer: escrevendo. Acreditem, já estou me sentindo melhor...
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