domingo, 11 de outubro de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXII

SURPRESA DESAGRADÁVEL (MAIS UMA VEZ)

Nos dois dias seguintes, a rotina se manteve. Acordávamos por volta das 7 horas, a mãe preparava um café naquelas mesas coletivas e depois aguardávamos o momento em que a van fretada pelo albergue nos levaria até o hospital. O pai não reagia. Ao contrário, a função hepática dele estava cada vez pior. Os exames diários apontavam uma diminuição gradual da atividade do fígado. O Dr. Sílvio visitava o pai todos os dias e suas informações eram terrivelmente desanimadoras. A cada dia que passava, as chances de que o fígado dele reagisse ficavam mais distantes. Os amigos me ligavam a todo momento, assim como os parentes. Todo mundo ansiava por notícias, mas o que podíamos dizer é que ele estava na fase de recuperação e que o prognóstico era complicado. Existe um exame que é considerado básico para avaliar a condição do fígado. É o TP (tempo de protrombina). Esse exame tem o seguinte parâmetro: em uma pessoa com fígado normal uma amostra de sangue deve coagular 100% no período de 12 segundos. No caso do pai, coagulava 29%. Grosso modo, significava que o fígado dele estava com menos de 30% de atividade. E a cada dia que passava suas chances seriam menores. O Dr. Sílvio trabalhava com dados estatísticos. E sua experiência na área indicava que se não houvesse algum sinal de reação até o décimo dia após a cirurgia, o fígado caminharia para a deterioração, levando à morte do paciente, inevitavelmente. Passamos a trabalhar com essa hipótese, mesmo que a esperança nos mantivesse otimistas. Para a mãe não adiantava falar nada disso. Ela não admitia a menor possibilidade de que o pai não se recuperasse. Para ela era simples questão de tempo para o pai levantar daquela cama e retomar sua melhor forma. Até hoje não sabemos se ela tinha realmente essa expectativa ou se fazia de conta que não sabia da real gravidade do caso para não “nos desanimar”. Ou mesmo se sua condição de esposa e companheira de mais de 40 anos proporcionava-lhe uma espécie de sexto sentido onde o horizonte se mostrasse diferente daquele traçado pelos médicos.
Como eu disse, as pessoas ansiavam por notícias. Eu recebia ligações a cada 5 ou 10 minutos. Eram colegas de Banco, familiares, amigos de Paim Filho. Em Paim, aliás, continuava aquele estado de comoção geral. Os amigos faziam orações e até missas foram rezadas em prol da saúde do pai. Ele era muito querido na cidade. Nunca conheci ninguém que tivesse qualquer sentimento negativo em relação a ele. Era uma figura adorada por todos, sem dúvida.
E assim foi até a quinta-feira.
Esse dia foi fatídico.
Foi o dia em que decidi descer até a tesouraria do hospital para acompanhar a despesa que fora gerada até então com a internação do pai. O orçamento do Dr. Sílvio era de r$ 17.000,00, incluindo "um dia de UTI e mais 5 dias de quarto", (isso numa condição normal), além dos trabalhos da equipe de cirurgia. Para nós, uma pequena fortuna. Só que havia um problema: o caso dele não se enquadrava como "condição normal", em função da cirrose descoberta na cirurgia: haviam se passado 4 dias e o pai continuava na UTI. Fiquei imaginando quanto a mais já teria dado em despesas. Imaginei que já houvéssemos chegado a uns r$ 15.000,00 e que fatalmente passaríamos daquele orçamento inicial. E eu estava certo. Quando recebi o resumo emitido pela tesoureira do hospital, senti um calor envolvendo meu corpo e comecei a suar frio. Não desmaiei, mas acho que cheguei perto: aqueles quatro dias na UTI já havia gerado uma dívida com o Moinhos de Vento da ordem de r$ 29.000,00. Isso mesmo: praticamente o dobro do previsto, em metade do tempo esperado. Meu Deus! Por um momento o chão pareceu fugir de meus pés. Um filme passou pela minha cabeça. Não tínhamos esse dinheiro. Nunca fomos uma família de posses, não tínhamos acumulado patrimônio para bancar uma despesa desse porte. Já havia sido difícil fechar o acordo com o Dr. Sílvio pela metade disso. E agora nos apresentavam uma conta desse tamanho...e o pai ainda lá...Meu Deus! Fiz rapidamente as contas e foi fácil concluir que cada dia no hospital estava custando cerca de r$ 7.500,00. De onde tiraríamos dinheiro para pagar essa dívida? E ainda por cima não havia previsão para que o pai tivesse alta – longe isso. E se ele tivesse que ficar ainda por vários dias nessa condição? Fiquei olhando fixamente para a secretária, que percebeu meu estado de aflição.
- Moça, nós não temos esse dinheiro... – falei já com a voz meio trêmula.
- Bem, você me pediu uma posição das despesas até o momento. É isso que está aí. Vocês não tem plano de saúde, Unimed, por exemplo?
- Temos, mas é uma UNIMED regional. Não temos como pagar. Temos que providenciar a transferência dele para o SUS. Urgente.
- Só que o Hospital Moinhos de Vento não atende pelo SUS...
Claro que não. Senão teríamos vindo aqui desde o início, pensei. E agora, o que fazer? E se o pai ficasse mais 10 dias no hospital? Em vez de 29.000,00 seria mais de 100.000,00. Nem vendendo tudo o que o pai tinha conseguiríamos uma fortuna dessas. Sim, cem mil reais, para nós, era uma fortuna. O que fazer? O que fazer?
Só havia uma saída, ligar pro Dr. Sílvio e tentar a remoção dele para outro hospital.
- Mas isso é muito difícil – interveio a secretária. – Achar uma vaga pelo SUS no Hospital de Clínicas, na Santa Casa... é coisa que não se consegue da noite pro dia...
Eu sabia disso. Mas não havia saída. Tinha que ser feito, de qualquer maneira.
Não sei se meus irmãos e minha mãe tiveram naquele momento a exata noção do que estava acontecendo. Todos os nossos pensamentos estavam voltados para o pai, para sua situação complicada, para as perspectivas nada animadoras, pela esperança diária de que iniciasse alguma recuperação. Todos nós deveríamos estar focados somente nisso.
Só que eu não. Eu, naquele momento, não tinha sequer o direito de “curtir” esse drama e me focar somente nele. Tinha um agravante: agora eu iniciaria uma corrida contra o tempo para evitar o colapso definitivo da família. Naquele momento era muito séria a possibilidade de perdermos não apenas o nosso pai, mas, além disso, de perdermos o que nos restava de nossa já precária condição financeira. Juro que visualizei no horizonte a nossa família toda na miséria, sem exagero. E me vi vendendo o carro, vendendo a casa e a farmácia do pai, vendendo a nossa casinha de 80m2 (em sociedade com o Nando), tudo... E era algo real, não era nenhum devaneio de alguém apavorado. Se não tirasse o pai daquele hospital no dia seguinte, quando a despesa já ultrapassaria os r$ 35.000,00, esse exercício trágico de futurologia estaria começando a se concretizar. Amanhã era Sexta-Feira. No Sábado, tudo fecha, inclusive as casas legislativas, os governos – que é com quem eu pensava em contar. E então, tudo ficaria para Segunda-Feira. E em quanto estaria a despesa até lá?
Confesso que jamais em toda a minha vida eu havia passado por tamanha descarga de adrenalina, por tamanho stress. De um lado, vendo meu pai daquele jeito, caminhando vagarosamente para a morte e de outro vendo acontecer uma inevitável despesa, que se destinava a mantê-lo vivo, mas que nos levaria a uma situação de miserabilidade...
Nada mais eu enxerguei na minha frente a partir de então.
Voltamos ao albergue. Naquela noite eu não dormi. Foram pequenos cochilos entremeados por longos períodos de olhos esbugalhados mirando o teto do albergue e um cérebro que não descansava um minuto sequer, imaginando possíveis saídas para aquele terrível impasse. Eu contei os minutos para ver o primeiro raio de sol. Aquela sexta-feira ficaria marcada dentro de todo esse episódio. Posso me esquecer de tudo no futuro, mas jamais esquecerei aquela Sexta-Feira que estava por iniciar. Veremos por que.

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