sexta-feira, 30 de outubro de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXIV


NUM HOSPITAL PÚBLICO, FINALMENTE



O Dr. Sílvio chegou por volta das 19 horas. Estávamos no hospital o Digo e eu. O pai continuava na mesma. Sonolento, semi-consciente, seus exames mostrando um fígado inerte, sem muita perspectiva de recuperação. Conversamos com o médico enquanto ele providenciava o laudo e as enfermeiras preparavam o pai para o transporte pela ambulância. Já era o 5º dia depois da cirurgia. Se aquela fria estatística que o Dr. Sílvio insistia em considerar estivesse de fato correta, as chances de recuperação do pai caíam drasticamente para menos de 50%. Para mim e para o Digo, já restavam poucas esperanças. Era visível que aquele corpo havia sido demasiadamente agredido, primeiro pela ingestão continuada de bebida alcoólica acima do aceitável ao longo de décadas e agora pela supressão de 60% de um órgão vital antes já comprometido por uma cirrose, ainda que incipiente, mas sempre uma cirrose. Nas palavras do médico, notava-se um ar de decepção, estampada no laudo de transferência, que ainda guardo comigo. Mas falava com cautela. E pude captar entre suas explicações um respingo de esperança, que até me animou um pouco: havia casos documentados de pacientes nessas condições que se recuperaram a partir do décimo dia da cirurgia. Quem sabe?
* * *
Por volta das 20 horas tudo estava pronto. Assinamos alguns documentos, combinamos com o hospital que no dia seguinte viríamos para acertar a dívida e nos dirigimos ao leito do pai para acompanhar a transferência dele. Foi colocado em uma maca e sobre uma cama especial que o conduziria até a ambulância. No Hospital de Clínicas um leito o esperava, na UTI do 13º andar. Entrementes, a cena que vimos foi estarrecedora. Havia no ar uma sensação ruim, diferente, nem sei explicar direito. Quando o pai saiu finalmente da cabine em que se encontrava, estava de olhos abertos, fitando o teto. Havia um emaranhado de tubos, fios, cateteres e aparelhos de monitoração sobre ele.Do canto de sua boca descia um filete de sangue vivo. Era, com certeza, fruto da movimentação da sonda que atravessava seu nariz, mas nos causou uma impressão de que ele caminhava realmente para o fim. Embora ainda bastante sonolento, olhou para mim e para o Digo como se não entendesse o que acontecia. Mas nos reconheceu, com certeza. E enquanto os enfermeiros o conduziam até a ambulância, mantive uma mão sobre sua testa, enquanto o Digo segurava a sua mão. Difícil descrever o que sentíamos. Era mesmo uma sensação tétrica. Não parecia real. Era como se de repente tivéssemos atravessado alguma porta para outra dimensão. Acompanhávamos toda a movimentação sem entender muito bem qual seria o próximo passo, obedecendo a todas as instruções que ouvíamos da equipe que nos acompanhava. Era tudo feito de forma automática, sem raciocinar. Eu lembro que não sentia fome, nem sede, nada. Eu só tinha o pensamento fixo de ver o pai acomodado no outro hospital. Depois, que acontecesse o que fosse para acontecer. Deus saberia o que era melhor naquele momento.
E foi assim que chegamos ao Clínicas.
Fomos recebidos por um tal Dr. Paulo Ricardo, que me chamou a uma sala para preencher outra leva de documentos. Assinei um termo de responsabilidade, enquanto pai era conduzido ao seu leito na UTI.
Subi, então, ao décimo terceiro andar, junto com o médico, que me conduziu até a UTI.
O pai estava lá, os últimos preparativos para a continuidade do tratamento.
Havia um médico perto dele, que me chamou para o lado. “Más notícias”, pensei comigo. Mas não, ao contrário. Eis o que ouvi: “ Bem, o seu pai fez uma cirurgia de grande extensão, retirou parte significativa de um órgão vital. Vem apresentando uma insuficiência hepática, mas que ainda não é tão grave, é controlável. Vamos medicá-lo e aguardar. Esse tipo de cirurgia é assim mesmo. É preciso dar tempo ao organismo para se readaptar a essa nova condição. Embora precariamente, o fígado dele ainda funciona e deve se regenerar aos poucos. Não sabemos quanto, mas vai se regenerar, devolvendo-lhe gradativamente a função hepática. Teremos que ter paciência, muita calma. Vamos alcançar a ele tudo o que dispomos para a sua recuperação...”
Foram palavras alentadoras, finalmente. Suspirei e voltei-me para o leito, enquanto o Doutor se despedia. Naquele instante minhas expectativas haviam mudado. O pai estava com os olhos bem abertos e me olhava. Me aproximei e perguntei como ele estava. “Com sono”, respondeu. “Descanse, então, pai. Eu e o Digo vamos pra casa agora, já são mais de 10 horas da noite. Amanhã de manhã vamos estar aqui e queremos que você já esteja em condições de a gente bater um papo, ok?”. “Ta bom”, ele respondeu. “Deixa eu descansar. Dá um beijo na mãe”.
Estava mais consciente. Acho que a movimentação toda, o transporte, o deixaram mais acordado.
Havia muito que conversar. Eu precisava lembrá-lo que ainda no hospital Moinhos de Vento, em uma das visitas, o vi murmurando alguma coisa e aproximei meu ouvido de sua boca. E foi emocionante o que ouvi: “...se eu tiver essa chance, não quero outra...” Como se conversasse com Deus, de olhos fechados, com uma voz muito fraca.
Que ele pudesse conversar. Era o que eu desejava para aquele sábado que estava por vir.
Deixamos o hospital depois das 22 horas. Tivemos que tomar um táxi até o albergue. E só então senti um pouco de fome, quando a adrenalina finalmente baixou. Repassamos todo acontecido para a mãe, enquanto tomávamos um café com pão e mortadela na mesa coletiva. Estávamos sozinhos. Os demais “hóspedes” já dormiam. A mãe ouviu atentamente tudo o que contamos e se mostrou um tanto mais aliviada quando soube que tudo havia dado certo e que o médico do Clínicas nos havia deixado um pouco mais otimistas.
Era tarde e precisávamos dormir.
Extremamente cansados, mal sabíamos que aquele Sábado que se avizinhava seria o primeiro de tantos mais que passaríamos em Porto Alegre dali para frente esperando a recuperação do pai.

domingo, 18 de outubro de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXIII

UM OBJETIVO, UMA VITÓRIA!

Sexta-Feira, 27 de Janeiro de 2006.
Sem dormir a noite toda, o normal seria que eu me encontrasse mal humorado, cansado, letárgico até.
No entanto, às 6 horas da manhã a minha adrenalina já estava alta e não consegui sequer tomar uma xícara do café cuidadosamente preparado pela mãe, que também havia acordado muito cedo. Tanto ela quanto meus irmãos agora estavam cientes de que aquele dia seria decisivo para o destina não só do pai como da família, de certa forma. Era o dia em que eu tentaria, de todas as formas, transferir o meu pai de um hospital particular, que gerava uma despesa que crescia em progressão geométrica para um hospital público, com atendimento pelo SUS- no caso, o Hospital de Clínicas. O ceticismo da secretária do Moinhos de Vento, que achara quase impossível que eu conseguisse a proeza de obter a transferência já naquela Sexta-Feira não me abateu. Parecia que eu estava tomado por alguma força diferente, nem sei explicar. Eu conversava com a mãe e com os irmãos, mas meu pensamento estava fixo, obsessivamente focado na tarefa que me aguardava naquele que ficaria para mim marcado como “o mais longo dos dias”.
Primeiro, tratei de partir com a primeira van da manhã, que sairia por volta das 7 horas. Sabia que o horário de visitas começava bem mais tarde, mas não era aquele o meu propósito. Eu precisava chegar cedo e me munir de informações na secretaria do hospital para depois iniciar minha série de contatos com amigos, políticos e colegas de Banco, visando concretizar o meu objetivo. Além de contar com a ajuda do Dr.Sílvio, claro. Sem o aval dele, sequer poderíamos iniciar as tratativas para tal.
E foi por ele que comecei, logo cedo. Sabia que os médicos costumam acordar muito cedo. E mal bateu o sinal das 7:30 quando fiz o primeiro contato. Dado o sinal verde para iniciar a odisséia, parti para aquilo a que eu havia me preparado: convencer um sem-número de amigos e conhecidos da necessidade de transferir o doente a qualquer custo naquele dia, naquela Sexta-Feira, porque caso contrário passaríamos mais um final de semana de angústia, acompanhando uma recuperação duvidosa do pai e uma conta de hospital que rumava para o impagável. Às 9 horas da manhã eu já tinha, então, ligado para a Fundação Banrisul, para deputados de diversos partidos, para amigos, para colegas de Banco. Quando abriu o horário de visitas, a mãe e os meus irmãos já estavam no hospital. Fui com eles até a sala de espera da UTI e fiz uma visita ao leito do pai, onde pude constatar que a situação era exatamente igual. O boletim divulgado logo em seguida repetia o mesmo que se vira desde a cirurgia: “inspira cuidados”. Ou seja: nenhuma reação, nenhuma tendência, nada. Ele simplesmente não reagia. Confesso que naquele momento nem isso me abalava. A minha determinação era transferi-lo dali, parar com a “sangria financeira” e só depois pensar no que fazer. Era isso que me dominava. Acho que agi como uma criança autista, que por sua condição concentra-se em algo de tal forma que aquilo passa a ser seu mundo, deixando até de atender aos estímulos externos. Era assim que eu me sentia. E segui adiante.
O problema residia novamente em obter uma vaga, um leito, no Hospital de Clínicas. E só havia um jeito: recorrer à central de leitos, coordenada pelo governo estadual. E de que forma, se provavelmente a demanda era muito superior aos leitos disponíveis no HC? Infelizmente, da única maneira possível nesse país injusto: com pressão, muita pressão. Passei então a contar com a ajuda de dois amigos influentes dentro da assembléia legislativa, aos quais serei eternamente grato, mas cujos nomes me permito omitir por razões óbvias. Esses amigos passaram o dia em contato comigo, intercalando ligações e acompanhando um processo interno que ajudaram a abrir junto à central de leitos. Por volta das 10 horas da manhã sentei-me num banco de pedra no pátio frontal do Hospital Moinhos de Vento e passei a usar continuamente o meu celular, a ponto de senti-lo esquentar junto ao ouvido. Em intervalos que não duravam mais do que 5 minutos, recebia ligações de todos os lados. Era um bombardeio de pedidos de informação, familiares ligando, amigos ansiosos por notícias, colegas de Banco preocupados comigo e com o pai...´
As notícias não pareciam boas. Estava difícil conseguir o tal leito. O empenho dos meus dois contatos da assembléia parecia não ser suficiente. Estávamos mexendo com uma estrutura toda preparada para funcionar de acordo com as necessidades apontadas pelos médicos e hospitais credenciados. Era preciso colocar o Dr.Sílvio em contato com autoridades para explicar o quadro de gravidade do caso do pai e convencê-los de que a nossa família não tinha as mínimas condições financeiras para mantê-lo num hospital da categoria do Moinhos de Vento. E mais, convencê-los do porquê de termos recorrido a um hospital particular se de fato não tínhamos tais condições. Convenhamos, explicar que o tínhamos feito na expectativa de gastar “apenas r$ 17.000,00” não era tarefa fácil. E minha missão, naquele momento, era fazer um “meio-de-campo” entre todas as partes envolvidas.
Eram quase 15 horas e as coisas não andavam. Me dei conta de que não havia tomado café-da-manhã, nem havia almoçado. Não tinha sentido fome nem sede até então. A adrenalina era tanta que meu corpo sequer se dava conta das necessidades básicas. De fato, eu não parava. A eu continuava com os contatos, sem me dar conta que as outras pessoas precisavam ter almoçado. Acho que liguei para vários celulares no horário do meio-dia, sem me dar conta de estar sendo inoportuno. Vejam o estado mental em que eu me encontrava em razão da obsessão em resolver aquele problema naquele dia.
Às 5 da tarde o Digo chegou ao hospital, sozinho. E passou a acompanhar o drama.
Então, eis que após um dia inteiro de negociações, recebi um telefonema da assembléia legislativa: haviam conseguido o leito. Dá pra imaginar como me senti? Me contive para não começar a chorar do lado do meu irmão. Era mais uma vitória entre tantos desafios que haviam surgido nesse doloroso drama que vivíamos. Agora, era só avisar o Dr. Sílvio para que viesse até o hospital para preparar o laudo e providenciar a transferência.
Tive ainda uma dificuldade adicional, pois demorei a localizar o Dr. Sílvio. Cheguei a ficar nervoso por alguns momentos, porque seu celular teimava em não atender e eu começava a imaginar “só faltava essa: sofrer tanto para obter um leito no HC e agora não localizar o médico para providenciar o laudo”... Mas deu tudo certo. De repente o celular dele atendeu e ele prontamente correu para o hospital. Faltava um último detalhe: a ambulância. Teria que contratar uma. Particular, claro. Fui até a Secretaria do Hospital e pedi que me indicassem alguns serviços, ao mesmo tempo em que comuniquei que havíamos obtido um leito em outro hospital e que o pai seria transferido. Podiam providenciar os papéis de transferência. Quiseram falar com o Dr. Sílvio para confirmar. Passei-lhes o celular dele e conversaram. Naquelas alturas eu já me sentia tão seguro que contratei os serviços de uma ambulância. Cobraram os olhos da cara para transportar o pai para poucas quadras dali. Mas valeu a pena. Ah, como valeu! Quando veio a conta do celular, no mês seguinte, ficou estampado o que fora aquele dia para mim. Tenho a conta guardada em meio a outros tantos papéis remanescentes da internação pai. E se alguém duvidar e posso mostrar: 06 páginas de ligações, mais de R$ 600,00 gastos num único dia. A bateria do aparelho, que não tinha mais de 30 dias, teve que ser recarregada à noite.
Hoje, uma das imagens mais marcantes que tenho daquela Sexta-Feira é daquele banco de pedra onde fiquei sentado por quase 12 horas, com o pensamento fixo num objetivo. Alcançado, enfim. As outras imagens daquele dia, mais tristes, eu narro adiante...

domingo, 11 de outubro de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXII

SURPRESA DESAGRADÁVEL (MAIS UMA VEZ)

Nos dois dias seguintes, a rotina se manteve. Acordávamos por volta das 7 horas, a mãe preparava um café naquelas mesas coletivas e depois aguardávamos o momento em que a van fretada pelo albergue nos levaria até o hospital. O pai não reagia. Ao contrário, a função hepática dele estava cada vez pior. Os exames diários apontavam uma diminuição gradual da atividade do fígado. O Dr. Sílvio visitava o pai todos os dias e suas informações eram terrivelmente desanimadoras. A cada dia que passava, as chances de que o fígado dele reagisse ficavam mais distantes. Os amigos me ligavam a todo momento, assim como os parentes. Todo mundo ansiava por notícias, mas o que podíamos dizer é que ele estava na fase de recuperação e que o prognóstico era complicado. Existe um exame que é considerado básico para avaliar a condição do fígado. É o TP (tempo de protrombina). Esse exame tem o seguinte parâmetro: em uma pessoa com fígado normal uma amostra de sangue deve coagular 100% no período de 12 segundos. No caso do pai, coagulava 29%. Grosso modo, significava que o fígado dele estava com menos de 30% de atividade. E a cada dia que passava suas chances seriam menores. O Dr. Sílvio trabalhava com dados estatísticos. E sua experiência na área indicava que se não houvesse algum sinal de reação até o décimo dia após a cirurgia, o fígado caminharia para a deterioração, levando à morte do paciente, inevitavelmente. Passamos a trabalhar com essa hipótese, mesmo que a esperança nos mantivesse otimistas. Para a mãe não adiantava falar nada disso. Ela não admitia a menor possibilidade de que o pai não se recuperasse. Para ela era simples questão de tempo para o pai levantar daquela cama e retomar sua melhor forma. Até hoje não sabemos se ela tinha realmente essa expectativa ou se fazia de conta que não sabia da real gravidade do caso para não “nos desanimar”. Ou mesmo se sua condição de esposa e companheira de mais de 40 anos proporcionava-lhe uma espécie de sexto sentido onde o horizonte se mostrasse diferente daquele traçado pelos médicos.
Como eu disse, as pessoas ansiavam por notícias. Eu recebia ligações a cada 5 ou 10 minutos. Eram colegas de Banco, familiares, amigos de Paim Filho. Em Paim, aliás, continuava aquele estado de comoção geral. Os amigos faziam orações e até missas foram rezadas em prol da saúde do pai. Ele era muito querido na cidade. Nunca conheci ninguém que tivesse qualquer sentimento negativo em relação a ele. Era uma figura adorada por todos, sem dúvida.
E assim foi até a quinta-feira.
Esse dia foi fatídico.
Foi o dia em que decidi descer até a tesouraria do hospital para acompanhar a despesa que fora gerada até então com a internação do pai. O orçamento do Dr. Sílvio era de r$ 17.000,00, incluindo "um dia de UTI e mais 5 dias de quarto", (isso numa condição normal), além dos trabalhos da equipe de cirurgia. Para nós, uma pequena fortuna. Só que havia um problema: o caso dele não se enquadrava como "condição normal", em função da cirrose descoberta na cirurgia: haviam se passado 4 dias e o pai continuava na UTI. Fiquei imaginando quanto a mais já teria dado em despesas. Imaginei que já houvéssemos chegado a uns r$ 15.000,00 e que fatalmente passaríamos daquele orçamento inicial. E eu estava certo. Quando recebi o resumo emitido pela tesoureira do hospital, senti um calor envolvendo meu corpo e comecei a suar frio. Não desmaiei, mas acho que cheguei perto: aqueles quatro dias na UTI já havia gerado uma dívida com o Moinhos de Vento da ordem de r$ 29.000,00. Isso mesmo: praticamente o dobro do previsto, em metade do tempo esperado. Meu Deus! Por um momento o chão pareceu fugir de meus pés. Um filme passou pela minha cabeça. Não tínhamos esse dinheiro. Nunca fomos uma família de posses, não tínhamos acumulado patrimônio para bancar uma despesa desse porte. Já havia sido difícil fechar o acordo com o Dr. Sílvio pela metade disso. E agora nos apresentavam uma conta desse tamanho...e o pai ainda lá...Meu Deus! Fiz rapidamente as contas e foi fácil concluir que cada dia no hospital estava custando cerca de r$ 7.500,00. De onde tiraríamos dinheiro para pagar essa dívida? E ainda por cima não havia previsão para que o pai tivesse alta – longe isso. E se ele tivesse que ficar ainda por vários dias nessa condição? Fiquei olhando fixamente para a secretária, que percebeu meu estado de aflição.
- Moça, nós não temos esse dinheiro... – falei já com a voz meio trêmula.
- Bem, você me pediu uma posição das despesas até o momento. É isso que está aí. Vocês não tem plano de saúde, Unimed, por exemplo?
- Temos, mas é uma UNIMED regional. Não temos como pagar. Temos que providenciar a transferência dele para o SUS. Urgente.
- Só que o Hospital Moinhos de Vento não atende pelo SUS...
Claro que não. Senão teríamos vindo aqui desde o início, pensei. E agora, o que fazer? E se o pai ficasse mais 10 dias no hospital? Em vez de 29.000,00 seria mais de 100.000,00. Nem vendendo tudo o que o pai tinha conseguiríamos uma fortuna dessas. Sim, cem mil reais, para nós, era uma fortuna. O que fazer? O que fazer?
Só havia uma saída, ligar pro Dr. Sílvio e tentar a remoção dele para outro hospital.
- Mas isso é muito difícil – interveio a secretária. – Achar uma vaga pelo SUS no Hospital de Clínicas, na Santa Casa... é coisa que não se consegue da noite pro dia...
Eu sabia disso. Mas não havia saída. Tinha que ser feito, de qualquer maneira.
Não sei se meus irmãos e minha mãe tiveram naquele momento a exata noção do que estava acontecendo. Todos os nossos pensamentos estavam voltados para o pai, para sua situação complicada, para as perspectivas nada animadoras, pela esperança diária de que iniciasse alguma recuperação. Todos nós deveríamos estar focados somente nisso.
Só que eu não. Eu, naquele momento, não tinha sequer o direito de “curtir” esse drama e me focar somente nele. Tinha um agravante: agora eu iniciaria uma corrida contra o tempo para evitar o colapso definitivo da família. Naquele momento era muito séria a possibilidade de perdermos não apenas o nosso pai, mas, além disso, de perdermos o que nos restava de nossa já precária condição financeira. Juro que visualizei no horizonte a nossa família toda na miséria, sem exagero. E me vi vendendo o carro, vendendo a casa e a farmácia do pai, vendendo a nossa casinha de 80m2 (em sociedade com o Nando), tudo... E era algo real, não era nenhum devaneio de alguém apavorado. Se não tirasse o pai daquele hospital no dia seguinte, quando a despesa já ultrapassaria os r$ 35.000,00, esse exercício trágico de futurologia estaria começando a se concretizar. Amanhã era Sexta-Feira. No Sábado, tudo fecha, inclusive as casas legislativas, os governos – que é com quem eu pensava em contar. E então, tudo ficaria para Segunda-Feira. E em quanto estaria a despesa até lá?
Confesso que jamais em toda a minha vida eu havia passado por tamanha descarga de adrenalina, por tamanho stress. De um lado, vendo meu pai daquele jeito, caminhando vagarosamente para a morte e de outro vendo acontecer uma inevitável despesa, que se destinava a mantê-lo vivo, mas que nos levaria a uma situação de miserabilidade...
Nada mais eu enxerguei na minha frente a partir de então.
Voltamos ao albergue. Naquela noite eu não dormi. Foram pequenos cochilos entremeados por longos períodos de olhos esbugalhados mirando o teto do albergue e um cérebro que não descansava um minuto sequer, imaginando possíveis saídas para aquele terrível impasse. Eu contei os minutos para ver o primeiro raio de sol. Aquela sexta-feira ficaria marcada dentro de todo esse episódio. Posso me esquecer de tudo no futuro, mas jamais esquecerei aquela Sexta-Feira que estava por iniciar. Veremos por que.

sábado, 3 de outubro de 2009

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXI

O DIA SEGUINTE

A notícia foi repassada a amigos e familiares tal qual recebida do Dr. Sílvio. Enfatizei as chances de 80% de sobrevivência dele, sem descuidar que todo mundo também ficasse informado dos riscos que corria.
De certa forma, acho que todo mundo recebeu a notícia com otimismo. Lembro de ter ligado ao Dr. Jorge, que participara da cirurgia e que já estava embarcando na viagem de volta, e ter ouvido dele uma breve explicação sobre a cirurgia, acompanhada de uma mensagem otimista sobre o caso. Contei isso a todos que me questionaram a partir de então sobre o estado de saúde do pai.
Viajei naquela noite mesmo para a capital.
Cheguei às 5 da manhã, tomei um táxi e rumei para o albergue, onde encontraria a mãe, o Nando e o Digo. Não lembro se a Mili foi no mesmo dia, mas lembro de termos nos encontrado todos no Hospital Moinhos de Vento. Eu estava muito ansioso para vê-lo e nem consegui tomar o café que a mãe preparou cedinho numa daquelas mesas coletivas. Desta vez eu só voltaria quanto as coisas estivessem bem. Não estava em férias, mas havia ligado para meus superiores e obtido apoio e a licença para acompanhar o pai em Porto Alegre.
* * *
Paciente na UTI só pode receber visitas em alguns momentos do dia e por isso já sabíamos que deveríamos chegar ao hospital e esperar até que as visitas fossem liberadas. Era permitido a entrada de uma pessoa por vez. Chegamos cedo, com a Van fretada pelo albergue e ficamos todos na sala de espera. Eu não conhecia o hospital Moinhos de Vento. Me impressionou a qualidade das instalações, o asseio do ambiente, o acabamento da construção, a organização dos atendentes. Um hospital de primeiro mundo, pensei. E meu pai estava ali. Sendo atendido por uma estrutura dessa magnitude. Por um momento senti uma enorme segurança. Ora, se meu pai necessitava de uma cirurgia complexa, de alto risco, e estávamos num dos melhores hospitais do país, atendidos por médicos de alta categoria, as coisas tendiam a dar certo. E passei a acreditar firmemente que meu pai sairia daquela situação e ainda conviveria conosco durante muitos anos.
Por volta das 9 horas da manhã saía o boletim médico.
Eu e ao Nando descemos até a portaria e aguardamos até que fosse publicado o primeiro boletim do dia. Lemos naquele papel: “ Egídio Bernardo Arsego: inspira cuidados” . Normal. Já esperávamos que depois de uma cirurgia tão complexa, seu quadro fosse esse. Retornamos ao terceiro andar e peregrinamos pelos corredores até retornar à sala de espera da UTI. Enquanto aguardávamos, junto com dezenas de outras pessoas estranhas, ouvíamos aqueles sons característicos e assustadores de eletrocardiogramas, campainhas de aviso, aparelhos de monitoração cardíaca e pulmonar – coisas de UTI mesmo. E nosso pai estava lá dentro, numa daquelas camas, sem 60% do seu fígado, esperando que seu organismo reagisse. Era angustiante. Via-se claramente esse sentimento de angústia também na fisionomia das outras famílias que ali aguardavam o momento de poderem visitar seus familiares.
Quando finalmente foi permitido acessar a sala da UTI, instintivamente passei à frente de todos. Quando percebi, já tinha entrado, deixando para depois a visita da mãe, do Nando, do Digo, da Mili... Mas não havia outro jeito. Era muita apreensão. Eu precisava vê-lo. Eu tinha que me convencer de que ele estava vivo, de que tudo dera certo, de que todo aquele esforço dispendido havia valido, afinal.
Atravessei o corredor, observando como num relâmpago todos os pacientes que enfileiravam-se embrenhados entre dezenas de aparelhos de monitoração, fios, tubos de oxigênio, cateteres... O pai estava no último leito daquela ala. Dormia profundamente, com a boca entreaberta, uma sonda pelo nariz e dezenas de pequenos plugs grudados no peito. Tinha um catéter na artéria do pescoço, por onde entrava alguma espécie de soro e um dreno que descia de seu abdome até um coletor acoplado ao leito, por onde descia um líquido amarelado – certamente líquido que se formava após a cirurgia. Não era muito agradável de se ver aquela cena, mas confesso que esperava até algo pior, como vê-lo entubado ou cheio de esparadrapos pelo rosto. No entanto, seu rosto estava livre, seus aspecto até normal, bem corado.
Perguntei a uma enfermeira se podia acordá-lo. Ela respondeu que sim, mas que deveria falar bem alto, porque ele estava num estado de torpor, ficando difícil manter-se acordado.
Cheguei bem perto e chamei por ele.
- Pai...pai!...
Como não respondesse, coloquei minha boca mais próxima de seu ouvido e chamei novamente, com maior volume, ao mesmo tempo em que bati de leve com a mão em seu rosto.
Então ele abriu os olhos, com grande dificuldade, e olhou pra mim.
- Olá, véio! – pronunciei, com os olhos marejados e tomado pela emoção de percebê-lo vivo e em recuperação.
- Marco!
Meus olhos se encheram de lágrimas ao ouvir meu nome. Nem sei explicar direito por quê. Acho que naquele momento eu apenas tive a confirmação de tudo o que eu esperava nesse episódio. Foi naquele instante, ao ver que estava ali, vivo, falando comigo, me reconhecendo, que eu tive a confirmação de que toda a iniciativa que eu tivera de tomar a frente, de buscar o tratamento, de dedicar os últimos 60 dias somente a ele, à busca da sua recuperação, foi ali que eu tive de fato a certeza de que tudo havia dado certo, independente dos desfecho, que eu confiava que seria bom.
Não consegui mais falar muita coisa.
- Você está bem, pai?
- Bem, filho, bem. – foi o que ouvi dele, com voz fraca e ar sonolento.
Seus olhos voltaram a se fechar e caiu em sono profundo novamente, em questão de segundos. Percebi que ele precisava descansar. Estava enfraquecido e sob efeito de forte medicação. Não adiantaria estender a visita, nem tentar conversar com ele naquele momento. Ele precisava de repouso. E havia mais gente que desejava vê-lo no dia seguinte ao da cirurgia. Dei-lhe um beijo na testa e me afastei do leito, indo em direção à saída. Um sentimento de alívio e outro de comoção me acompanhavam. Mas eu estava feliz naquele momento. E confiante, muito confiante.