NUM HOSPITAL PÚBLICO, FINALMENTE
O Dr. Sílvio chegou por volta das 19 horas. Estávamos no hospital o Digo e eu. O pai continuava na mesma. Sonolento, semi-consciente, seus exames mostrando um fígado inerte, sem muita perspectiva de recuperação. Conversamos com o médico enquanto ele providenciava o laudo e as enfermeiras preparavam o pai para o transporte pela ambulância. Já era o 5º dia depois da cirurgia. Se aquela fria estatística que o Dr. Sílvio insistia em considerar estivesse de fato correta, as chances de recuperação do pai caíam drasticamente para menos de 50%. Para mim e para o Digo, já restavam poucas esperanças. Era visível que aquele corpo havia sido demasiadamente agredido, primeiro pela ingestão continuada de bebida alcoólica acima do aceitável ao longo de décadas e agora pela supressão de 60% de um órgão vital antes já comprometido por uma cirrose, ainda que incipiente, mas sempre uma cirrose. Nas palavras do médico, notava-se um ar de decepção, estampada no laudo de transferência, que ainda guardo comigo. Mas falava com cautela. E pude captar entre suas explicações um respingo de esperança, que até me animou um pouco: havia casos documentados de pacientes nessas condições que se recuperaram a partir do décimo dia da cirurgia. Quem sabe?
* * *
Por volta das 20 horas tudo estava pronto. Assinamos alguns documentos, combinamos com o hospital que no dia seguinte viríamos para acertar a dívida e nos dirigimos ao leito do pai para acompanhar a transferência dele. Foi colocado em uma maca e sobre uma cama especial que o conduziria até a ambulância. No Hospital de Clínicas um leito o esperava, na UTI do 13º andar. Entrementes, a cena que vimos foi estarrecedora. Havia no ar uma sensação ruim, diferente, nem sei explicar direito. Quando o pai saiu finalmente da cabine em que se encontrava, estava de olhos abertos, fitando o teto. Havia um emaranhado de tubos, fios, cateteres e aparelhos de monitoração sobre ele.Do canto de sua boca descia um filete de sangue vivo. Era, com certeza, fruto da movimentação da sonda que atravessava seu nariz, mas nos causou uma impressão de que ele caminhava realmente para o fim. Embora ainda bastante sonolento, olhou para mim e para o Digo como se não entendesse o que acontecia. Mas nos reconheceu, com certeza. E enquanto os enfermeiros o conduziam até a ambulância, mantive uma mão sobre sua testa, enquanto o Digo segurava a sua mão. Difícil descrever o que sentíamos. Era mesmo uma sensação tétrica. Não parecia real. Era como se de repente tivéssemos atravessado alguma porta para outra dimensão. Acompanhávamos toda a movimentação sem entender muito bem qual seria o próximo passo, obedecendo a todas as instruções que ouvíamos da equipe que nos acompanhava. Era tudo feito de forma automática, sem raciocinar. Eu lembro que não sentia fome, nem sede, nada. Eu só tinha o pensamento fixo de ver o pai acomodado no outro hospital. Depois, que acontecesse o que fosse para acontecer. Deus saberia o que era melhor naquele momento.
E foi assim que chegamos ao Clínicas.
Fomos recebidos por um tal Dr. Paulo Ricardo, que me chamou a uma sala para preencher outra leva de documentos. Assinei um termo de responsabilidade, enquanto pai era conduzido ao seu leito na UTI.
Subi, então, ao décimo terceiro andar, junto com o médico, que me conduziu até a UTI.
O pai estava lá, os últimos preparativos para a continuidade do tratamento.
Havia um médico perto dele, que me chamou para o lado. “Más notícias”, pensei comigo. Mas não, ao contrário. Eis o que ouvi: “ Bem, o seu pai fez uma cirurgia de grande extensão, retirou parte significativa de um órgão vital. Vem apresentando uma insuficiência hepática, mas que ainda não é tão grave, é controlável. Vamos medicá-lo e aguardar. Esse tipo de cirurgia é assim mesmo. É preciso dar tempo ao organismo para se readaptar a essa nova condição. Embora precariamente, o fígado dele ainda funciona e deve se regenerar aos poucos. Não sabemos quanto, mas vai se regenerar, devolvendo-lhe gradativamente a função hepática. Teremos que ter paciência, muita calma. Vamos alcançar a ele tudo o que dispomos para a sua recuperação...”
Foram palavras alentadoras, finalmente. Suspirei e voltei-me para o leito, enquanto o Doutor se despedia. Naquele instante minhas expectativas haviam mudado. O pai estava com os olhos bem abertos e me olhava. Me aproximei e perguntei como ele estava. “Com sono”, respondeu. “Descanse, então, pai. Eu e o Digo vamos pra casa agora, já são mais de 10 horas da noite. Amanhã de manhã vamos estar aqui e queremos que você já esteja em condições de a gente bater um papo, ok?”. “Ta bom”, ele respondeu. “Deixa eu descansar. Dá um beijo na mãe”.
Estava mais consciente. Acho que a movimentação toda, o transporte, o deixaram mais acordado.
Havia muito que conversar. Eu precisava lembrá-lo que ainda no hospital Moinhos de Vento, em uma das visitas, o vi murmurando alguma coisa e aproximei meu ouvido de sua boca. E foi emocionante o que ouvi: “...se eu tiver essa chance, não quero outra...” Como se conversasse com Deus, de olhos fechados, com uma voz muito fraca.
Que ele pudesse conversar. Era o que eu desejava para aquele sábado que estava por vir.
Deixamos o hospital depois das 22 horas. Tivemos que tomar um táxi até o albergue. E só então senti um pouco de fome, quando a adrenalina finalmente baixou. Repassamos todo acontecido para a mãe, enquanto tomávamos um café com pão e mortadela na mesa coletiva. Estávamos sozinhos. Os demais “hóspedes” já dormiam. A mãe ouviu atentamente tudo o que contamos e se mostrou um tanto mais aliviada quando soube que tudo havia dado certo e que o médico do Clínicas nos havia deixado um pouco mais otimistas.
Era tarde e precisávamos dormir.
Extremamente cansados, mal sabíamos que aquele Sábado que se avizinhava seria o primeiro de tantos mais que passaríamos em Porto Alegre dali para frente esperando a recuperação do pai.