PARTE LIV
DESPEDIDA OFICIAL???
Na metade do ano houve um período em que ele estava se sentindo muito bem. Depois de uma das idas a Erexim, seu fígado parecer reagir melhor. Uma das tomografias mostrava um estacionamento dos tumores, mesmo que agora fossem três deles a nos preocupar. O último, descoberto no início de 2008, estava com pouco mais de 1 cm. Os outros dois haviam crescido e um deles já se aproximava de 2,6 cm. Preocupante, mas mantinham-se estacionados naquela etapa do tratamento, o que também deixou o pai um pouco mais tranqüilo do que das vezes anteriores. Talvez por isso mesmo sentiu-se melhor e de novo nos fez manter a esperança de prolongar sua sobrevida.
Até hoje me pergunto o que o levou a ter uma atitude para nós inusitada naquele inverno de 2008. O que teria ele em mente ao marcar uma missa na Igreja de Paim Filho, “para agradecer a Deus pela minha saúde” ? Não lembro a data, mas tenho presente o frio daquela noite. Ele ligou para nós e pediu que não faltássemos. Que estivéssemos todos presentes à missa da noite, naquele sábado. E o mesmo convite estendeu ao Nando e, acredito, a seus melhores amigos. A Igreja não estava cheia. A noite era fria e os casacos eram pesados. Encolhido em seu sobretudo e curvado pela fraqueza o pai rezou e cantou com sua voz trêmula e fraca, como que relembrando os bons tempos em que integrava o coral da Igreja, fazia as leituras, recolhia as esmolas. Quem sabe suas lembranças o levassem até os tempos em que atuava como coroinha, ou mesmo o fizessem divagar sobre os áureos tempos da Ordem Terceira Franciscana. O fato é que aquela noite, para ele, era uma noite de agradecimento. E, entendendo a mensagem, rezamos com ele da forma mais compenetrada possível. E quando o padre leu as intenções da missa e citou “em agradecimento pela saúde do Bernardo”, acho que não houve ninguém que não tivesse se emocionado. Afinal, era um contra-senso. Como podia uma pessoa com uma doença em fase terminal, tendo passado por todo aquele sofrimento, estar ali, diante do altar, agradecendo a Deus “pela saúde”? Foi muito comovente. Com o canto dos olhos, percebi que todos olhavam para o pai com o mesmo sentimento de comoção. Sinceramente, acho que aquela missa foi a sua despedida “oficial” da comunidade. Hoje não tenho mais dúvidas de que ele sabia que agora caminhava MESMO para o fim. Só não tinha noção de quanto tempo ainda lhe restava. Assim preferiu não arriscar e realizar seu “encontro final” com os amigos e familiares diante de Deus. E agradecer-Lhe pelo tempo de sobrevida pareceu uma necessidade inadiável. Deus lhe fora bondoso. Permitira que retornasse ao convívio de familiares e amigos e ali permanecesse por um tempo além do que se previa ao detectar-se sua doença. Imperioso agradecer. Acredito que a partir daí tudo se consumara. Estaria em paz com sua consciência. Redimido de qualquer erro cometido ao longo de sua vida em relação a quem com ele convivera e em paz com o Criador, fazendo-lhe um último agradecimento público. São essas coisas, são esses comportamentos que meu pai exibia que o tornavam tão amado por quem quer que o conhecesse. Não sei se um dia conhecerei alguém como ele. E disso me orgulho, de haver tido o privilégio ter sido filho de um ser assim iluminado, de tão rara figura nesses tempos em que impera a maldade, a incompreensão e a intolerância.