sábado, 4 de fevereiro de 2012

NO NATAL, ELE SE FOI...



COMENTÁRIO FINAL 






    

           O tempo foi passando e muitos detalhes acabaram se perdendo. Nos três anos da doença terminal do pai aconteceram fatos suficientes para que se escrevesse um romance, disso não tenho dúvidas. Vivemos situações e experimentamos sentimentos tão fortes que seria possível, talvez, escrever um "tratado" sobre as reações da mente humana diante da morte iminente. Quem acompanhou esta narrativa desde o início, deve ter percebido, no entanto, que apressei o final, deixando de lado muita coisa que poderia ser postada sobre esse que para mim foi o período mais estressante, dolorido e triste da minha vida até o momento. O objetivo, afinal, não era escrever nenhum romance ou tratado. Na proposição inicial deixei claro que a intenção era o simples desabafo.  Escrever sobre tudo o que aconteceu trouxe alívio para minha alma ferida pela perda da pessoa com a qual mais me identifiquei na vida e cujo legado me acompanhará pelo resto da existência.  Creio que o objetivo foi atingido. Quando escrevi a última linha, que programei para que acontecesse precisamente no Natal que fecharia exatos 3 anos da morte do Bernardo e para que terminasse com a mesma expressão colocada no título, senti que havia cumprido com uma missão que eu próprio me impusera: estava eternizada a história do fim do meu pai - para mim,  detentor de um dos mais encantadores e fantásticos corações que a natureza humana produziu.   Agora, a narrativa permanecerá na rede mundial, arquivada em algum canto do servidor-mor, disponível para acesso no mundo todo, até que alguém um dia resolva deletá-la. Mas, como eu disse, minha alma agora está satisfeita. Fica aqui o registro, para sempre, do quanto amei o meu pai, da falta eterna  que ele fará, do legado de bondade, honestidade e desprendimento dos bens materiais que ele nos deixou. Fica em paz, Egídio Bernardo Arsego. Meu pai.


FIM!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXIII






PARA SEMPRE...



Saí pela porta da frente do Hospital de Caridade, onde já se encontravam a mãe, o Nando, a Mili. Enquanto o corpo dele era preparado para ser levado ao necrotério, fiz todas as ligações possíveis. Liguei imediatamente para a Neu, informando da morte do pai. Depois liguei para a Jussane e pedi que tomasse as providências fúnebres necessárias. O corpo seria buscado pela funerária Tagliari. Fiz contato com o Dr. Paulo, com a rádio Poatã, de São José do Ouro, com a rádio Educadora de São João da Urtiga. Em poucos minutos toda a região saberia que o Bernardo já não estava mais neste mundo. Pedi que a Jussane conversasse com o Padre e marcasse a missa de corpo presente para as 10 horas da manhã. Seria véspera de Natal e com certeza os familiares mais distantes gostariam de retornar para suas cidades a tempo de ainda festejarem o Natal, muito embora para alguns a data com certeza não teria mais  o mesmo brilho.

A mãe estava muda. Não chorava. Acompanhava tudo o que eu fazia com atenção, sem dizer uma única palavra. Fumou um ou dois cigarros escorada no corrimão da escada central, com o olhar perdido no horizonte, como a tentar entender o que acontecia. Naquele momento eu sentia um impulso dentro de mim que me impelia a tomar todas as providências. Em sequência, uma após a outra, automaticamente. Era como se de repente eu soubesse de tudo o que era necessário para um funeral. E naquele momento eu soube. Tudo começou a acontecer de forma natural, cronológica, passo a passo...

Por volta das 14 horas soubemos que o corpo já estava no necrotério e descemos para a parte de baixo do terreno do HC. Havia uma porta grande que levava à garagem e, entrando por ela, à direita, uma outra que levava ao necrotério. Não entramos de imediato, nem deixamos que a mãe chegasse perto daquela porta. Quando finalmente chegou o Nego Tagliari com o carro funerário, trazendo o terno e as roupas que eu havia pedido à Jussane para comprar, finalmente acessamos aquela ala e pudemos ver, então, o corpo que jazia sobre a mesa de concreto, vestido apenas com as fraldas que usava no leito da UTI. O corpo já estava frio, filetes de sangue saíam de seus braços, pelos buracos de agulha feitos em suas veias para administrar medicamentos. Seus olhos continuavam entreabertos. Passei de leve a mão sobre o rosto, de cima para baixo, de modo que suas pálpebras deslizaram e fecharam-se. Vestimos o pai. Uma sensação estranha. Nenhum de nós havia feito isso na vida, nem havíamos tido contato tão próximo com qualquer cadáver, antes. Nem mesmo de algum familiar.  Mas agíamos de forma tão natural com o corpo imóvel do pai, que parecia o contrário. E, por incrível que pareça, eu sentia uma paz muito grande ao tocar o pai ali sobre a laje do necrotério. Depois, ficamos observando o Tagliari, que dava conta dos últimos detalhes para ajeitar o corpo.  As mãos foram cruzadas sobre o peito e os dedos colados com uma cola especial para não se abrirem, assim como os lábios. O terno foi ajeitado, a gravata, a gola da camisa, e seu cabelo foi penteado. Finalmente, o colocamos no caixão que viera desde Paim Filho e só então permitimos que a mãe o visse. Já que era inevitável que o visse morto, queríamos, ao menos,  que ela não ficasse com aquela imagem do pai semi-nu no necrotério. Que o visse já no caixão, arrumado. E ela veio, aproximou-se do caixão e chorou...

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Tudo pronto, finalmente o carro funerário tomou o rumo de Paim Filho, enquanto eu ainda tinha que passar no hospital para acertar alguns detalhes. Depois, com a mãe e mais alguém que não lembro, rumei para Sananduva, onde pegaria a Neu e as meninas para levá-las conosco ao velório do pai.

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Não preciso dar detalhes do velório, que foi igual a qualquer outro, mas ressalto a grande quantidade de pessoas que se fez presente para prestar as últimas homenagens ao cidadão painfilhense Bernardo. Sem dúvida, um dos maiores fluxos de pessoas já visto na casa mortuária do Hospital Santa Terezinha. Na missa, não foi diferente. Nos confortava ver o quanto nosso pai era querido pela população. Poucos parentes deixaram de vir. E os que não vieram foi por motivo de força maior, com certeza. De Nova Prata, veio uma van lotada. De Caxias, todos os primos, mais a tia Maria. De Foz do Iguaçu a Tia Marilene e o tio Armando...

E na missa me emocionei muito em alguns momentos. Chorei copiosamente em outros. Mas o que mais me tocou foi a homenagem que o prefeito Ique prestou ao meu pai. A decretação de LUTO OFICIAL POR 3 DIAS foi demais. Desabei. Era o reconhecimento máximo da comunidade pelo que representava o passamento do meu pai. Senti um misto de orgulho e de agradecimento e virei-me para trás, procurando localizar o prefeito para agradecer-lhe ao final da missa, o que só consegui quando já deixávamos a Igreja e nos preparávamos para ir até o cemitério. Lembro de ter dado um abraço emocionado no Ique e de ter dito um “muito obrigado”. Ele ficou com os olhos marejados e só disse: “ele merecia isso...” Jamais esqueceremos esse gesto do então Prefeito. Aliás, foi a coroação de uma amizade de décadas de nossas famílias.

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No cemitério, grande número de pessoas acompanhou as últimas homenagens prestadas ao Bernardo. Feitas as orações, despedímo-nos, sob forte emoção. E Enquanto o caixão era fechado e colocado no túmulo, pedi uma salva de palmas àquela figura querida que agora nos deixava. E o som das batidas ritmadas das mãos de todo o público presente naquele momento ecoou pelo vale do Inhandava que corria ao fundo...

Foi assim, que naquele fatídico Natal de 2008...ELE SE FOI...

PARA SEMPRE...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXII




               O FIM...



Não dormi direito naquela noite. Acho que ninguém da família dormiu. Fui vencido pelo cansaço e apaguei depois de um acesso de choro convulsivo que empapou o travesseiro antes de a Neu e as meninas irem dormir. Mas acordei várias vezes durante a noite, pensamento fixo no pai, sensação de que a qualquer momento poderíamos receber algum telefonema de Erechim. Por incrível que pareça eu ainda pretendia ir até o Banco para colocar alguns papéis em ordem e acompanhar de lá a situação do pai, mantendo contato telefônico com a Mili. Até hoje me culpo por isso. Talvez eu devesse ter ficado lá no Hospital de Caridade junto delas, dormisse ou não, acompanhando ele. Talvez ele sentisse a minha presença, que sempre lhe dera segurança. Talvez seu subconsciente,  em seu corpo quase morto, clamasse por mim ao seu lado... Teimosamente, no entanto, o meu cérebro não conseguia compreender que naquele leito da CTI jazia um corpo já sem forças para reagir, caminhando rapidamente para o fim. Estranhamente, eu, que durante três anos busquei preparar a todos da família para a morte inevitável do pai, relutava agora em entender que tudo estava chegando ao fim. Restava-me ainda um fio de esperança de que ele voltasse uma vez mais para casa. Que se fosse para morrer, que morresse lá, na sua cidade natal, junto de seus amigos e familiares. Mas eu parecia não sentir que isso fosse acontecer agora. E ainda ficava imaginando como seria aquele Natal se o pai tivesse que ficar alguns dias no hospital. Como faríamos o “amigo-secreto” sendo que alguém teria que ficar cuidando dele no hospital? Iríamos mesmo comemorar o Natal sem o pai e a mãe presentes?

E foi assim que amanheceu aquele 23 de Dezembro de 2008.

Não era ainda 6:30h da manhã quando saltei da cama. Me vesti para ir trabalhar. Minha intenção era ficar no Banco até o meio-dia e depois voltar a Erexim, dependendo das notícias. Antes, porém, um telefonema para a Mili. Teria ele se recuperado durante a noite? Teria seu fígado reagido uma vez mais, com o soro e os litros de sangue administrados em sua veia?

Liguei.

- Mili, como está o pai?

- Ia te ligar agora mesmo. O médico acabou de sair da CTI e disse que ele está muito mal! Muito mal mesmo! Acho melhor vocês virem logo...

Caiu então a ficha. Era o fim. Liguei para o Nando e pedi que viessem até Sananduva. Eu os esperaria para irmos todos a Erechim. Liguei em seguida para a Rosane, minha gerente adjunta e informei que naquele dia eu não iria trabalhar. Meu pai passava mal.

Saímos pouco depois das 10 horas da manhã, já preparando o espírito para o que viria. Nem lembro quem foi comigo. Também não lembro se alguém foi com outro carro, acho que o Digo. Só sei que chegamos ao hospital faltando 10 minutos para o meio-dia. E rumamos imediatamente para a CTI, onde já estavam a mãe e a Mili.

Quando cheguei à ante-sala, onde elas haviam passado a noite, conversamos rapidamente. A Mili contou de um sonho que a mãe tivera naquela noite, em que o pai teria chegado até perto dela e dito algo como “desta vez eu vou...” E a mãe teria chorado muito. Contou alguns detalhes do que acontecera durante a noite no hospital, de como se haviam acomodado para tentar dormir.

E enquanto conversavam, pedi onde ficava o banheiro e me dirigi até lá.

Mal acabei de fechar a porta e ouvi um grito, seguido de batidas na porta do banheiro.

- Marco, Marco, venha rápido...ele está indo...!

Saí rapidamente do banheiro e corri até a CTI, abrindo caminho por entre as pessoas que se acotovelavam na fila aguardando para visitar familiares no corredor que antecede a grande sala. No caminho, cruzei com a mãe em desespero sendo amparada pela Mili. Fizeram-me sinal para que entrasse. Ao lado do leito estava o Digão, segurando a mão do pai e olhando para o visor onde uma linha reta e um apito contínuo indicavam que aquele coração já não pulsava. Embora eu ainda tivesse conseguido ver duas ou três batidas fracas serem registradas pelo eletrocardiógrafo. Eram exatamente 12 horas do dia 23 de Dezembro de 2008. Seu corpo, ainda mais amarelo, permanecia quente. Seus olhos, entreabertos. E a boca parecia sorrir, deixando a impressão de que morrera tranquilamente, sem sofrimento. Lembro que a única coisa que me ocorreu fazer naquele momento foi sussurrar em seu ouvido ...”vai tranqüilo, meu pai, vai tranqüilo...” E saí rapidamente da sala. Precisava avisar o mundo que acabara de falecer o meu maior amigo.



quarta-feira, 30 de novembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXI




DERRADEIROS MOMENTOS



Assim que deixei a sala, entrou o Abílio, que ficou um tempo maior com ele. Havia um recado do Dr. Paulo para que eu fosse até o seu consultório, no prédio ao lado. Queria falar comigo. Convidei o Digão prá ir junto. Eu já imaginava qual seria a conversa. E não errei. Ele foi direto ao assunto. “Tudo o que era possível foi feito. Já foi um milagre ter chegado vivo até aqui, com todo o sangue que perdeu. Lhe administramos sangue e soro, o que lhe deu ainda alguma energia, mas o seu fígado está com as funções praticamente zeradas. Se ele ainda assim se recuperar, gostaria que vocês soubessem que nada mais há por fazer. Ele não suportaria nem uma próxima alcoolização...” Por um momento, ficamos pensativos, ao mesmo tempo em que absorvíamos o que o doutor falava. É interessante como a gente, mesmo sabendo de toda a situação, fica abalado quando ouve a sentença de morte da boca do médico. Tudo o que ele falou a gente já sabia ou imaginava, mas o choque de ouvir dele aconteceu do mesmo jeito. Talvez porque aquelas palavras, vindas do especialista que tratara dele desde o primeiro momento, significavam o fim de qualquer fio de esperança que ainda pudesse restar. Lembro de ter comentado com ele: “Dr. Paulo, a melhor coisa que poderia acontecer com o pai, quando nada mais restar a fazer, seria ele não mais se acordar...tenho certeza que o sofrimento psicológico dele, sentindo que vai morrer, seria muito maior do que qualquer sofrimento físico...”

Retornamos ao outro prédio e nos acomodamos na ante-sala da CTI, onde já estavam a Mili, a mãe, o Nando, o Abílio. O clima não poderia ser pior. Era visível o abatimento de todos. Nem lembro se comentamos com eles sobre as palavras do Dr. Paulo. Não era preciso. Cada um de nós, ao seu modo, sabia que estávamos diante dos últimos momentos do pai. O Abílio ainda comentou conosco que o pai havia sussurrado a ele que”...não querem me operar...” ficando ainda mais claro que ele mantinha uma última esperança de sobreviver em seus agora raros momentos de lucidez.

Já passava das 17 horas e as visitas na CTI estavam encerradas. Nos organizamos para retornar. A Mili e a mãe passariam a noite no hospital e nos manteriam informados sobre a situação. Se o pai melhorasse, iríamos nos organizar para um revezamento, já que não havia onde dormir senão nas poltronas da sala de espera, onde mal caberiam duas pessoas. E assim foi. Voltamos, entre apreensivos e ainda esperançosos de que algum tipo de milagre o mantivesse vivo por mais algum tempo. É assim mesmo que as coisas são. Mesmo na morte iminente, sempre se quer adiar os últimos momentos junto aos nossos entes queridos.

Quando cheguei em Sananduva, encontrei a Neu e as meninas mergulhadas no trabalho. Era o dia 22 de Dezembro e as encomendas de Natal acumulavam-se. Não tive como não juntar-me a elas. E enquanto dividíamos as tarefas, cada qual com suas “habilidades” fui fazendo um relato de tudo o que acontecera naquele dia, e a emoção tomava conta de todos na medida em que os fatos vinham à tona. Ficamos até por volta das 22 horas trabalhando e não agüentamos o cansaço. Meu plano era ir ao Banco trabalhar no dia seguinte, pois muita coisa já ficara acumulada e eu pretendia passar o Natal com o serviço mais ou menos em dia. Antes de  deitar, liguei para a Mili para saber notícias. Soube, então,  que ele havia entrado em coma profundo.



terça-feira, 15 de novembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LX






“DESENGANADO”





Enquanto dava meia-volta e já um pouco nervoso, decidi ligar para Sananduva para informar a Neu e as meninas. Prontamente a Neu sugeriu que eu passasse por lá antes de seguir para Erechim e que convidasse também meus irmãos para que viessem a Sananduva e dali rumássemos para o Hospital de Caridade. Tínhamos que fazer o trajeto por Coxilha, já que a estrada por Maximiliano de Almeida estava novamente intransitável. Assim foi feito. O Nando, o Digão e Sandro iriam comigo. A Mili iria depois, com a mãe.

Ainda na viagem, próximo de Tapejara, recebi um telefonema do Nando. “Boa notícia” – disse ele. “O pai chegou vivo! E já está na CTI, medicado”. Estranhamente, a maneira como me deu a notícia parecia deixar implícito que ainda acreditava num milagre, como se o pai, saindo dessa, voltaria a uma situação de “normalidade” dentro do seu quadro. Foi essa a impressão que eu tive ao desligar o telefone. No entanto, até pelas palavras que eu ouvira do Dr. Paulo, eu sabia que não havia mais volta. Se conseguisse sobreviver a esse revés, seria questão de dias para um desfecho. E eu temia, agora, que chegasse aquele momento mais difícil, em que o pai passaria a ficar acamado, definhando aos poucos, num sofrimento que não experimentara até então.

Quando chegamos a Erechim já passava das 13 horas. Ninguém quis almoçar. Fomos direto à CTI do hospital e nos acomodamos na sala de espera, ouvindo da Jussane o relato da terrível viagem de ambulância. Contou que a hemorragia não parou um instante sequer e que fora necessário parar várias vezes para que o pai vomitasse aquele “sangue vivo”, que literalmente jorrava de sua boca. Era assustador. Ele permaneceu consciente, mas foi ficando mais fraco a cada quilômetro do trajeto e no final da viagem já dormia profundamente. Segundo ela, o médico que acompanhou-os no trajeto literalmente gritava ao motorista : “Rápido! Pisa fundo! Tem que ir mais rápido!...” Certamente sabendo da gravidade do caso. Ainda, segundo a Jussane, ao chegarem no hospital encontraram tudo preparado. O Dr. Paulo havia tomado todas as providências e em questão de minutos o pai já estava entubado, com um litro de sangue e outro de soro em suas veias. Fantástico o trabalho do Paulo. Desde o primeiro momento mostrou-se um profissional de primeira linha, responsável, correto, dedicado. Aliás, comove-nos lembrar que assim fomos tratados por todos os profissionais que nos atenderam durante a doença do pai. Mas o Dr. Paulo merece um destaque à parte por ter sido o nosso médico do primeiro ao último instante, desde a descoberta da doença até o momento em que o coração do pai deu sua última batida.

Enquanto aguardávamos o momento de visitar o pai na CTI chegou o Abílio Vanz, que levava a Mili e a mãe.

Saímos um pouco para fazer um lanche no restaurante do hospital e quando voltamos o horário de visitação já estava aberto. Já havia uma fila no corredor e os familiares dos doentes internados eram liberados um a um para entrarem na CTI. Quando chegou a minha vez, entrei antes que a mãe deixasse a sala e os funcionários permitiram, até porque percebiam que a situação do pai era gravíssima. O sangue reposto e o soro na veia lhe haviam devolvido alguma energia, de modo que conseguia balbuciar alguma coisa, mesmo com o nariz atravessado por duas sondas. Ao vê-lo naquele leito, o tempo retrocedeu e voltei aos momentos de logo após a cirurgia, lá em 2006, quando o encontrei pela primeira vez, na recuperação do Moinhos de Vento, em Porto Alegre. Suas funções hepáticas estavam tão deterioradas que seu fígado agora funcionava menos do que aquele micro pedaço do órgão que lhe haviam deixado na cirurgia. Sua pele era amarela como gema de ovo. Estava suado e frio. Seus olhos, que sustentava entreabertos com grande dificuldade, estavam ainda mais amarelados, evidenciando que tudo voltara à estaca-zero, como lá no início. A mãe ficou de um lado da cama e eu do outro. Como sempre, olhei para ele e perguntei: “Como está, pai?” Mas ele quase não conseguia falar. E num balbucio extremamente anasalado por causa das sondas pronunciou algo que entendei como ...”vão fazer cirurgia?”... “Não, pai”, - respondi – “agora não tem como fazer cirurgia...você tem que descansar...” Ele estava consciente da situação, claro. E o instinto de preservação da vida lhe fazia crer que ainda restava uma saída. “Cirurgia”. O que pensava naquele momento? Que cirurgia seu cérebro imaginava ser possível ainda que pudesse salvá-lo da morte iminente? Foi angustiante por alguns momentos, porque percebi isso na hora. Ele desejava viver um pouco mais. Nós também queríamos que vivesse. Muito mais. Que ficasse conosco. Mas a natureza teimava em dizer “chega!” Enquanto a mãe segurava sua mão, ele murmurou mais alguma coisa e remexeu-se na cama, demonstrando que algo o incomodava. A mãe pôs o ouvido perto de sua boca e entendeu que  sua perna esquerda não estava confortável. O acomodamos melhor e ele sossegou. Dei-lhe um beijo na testa fria e suada, passei a mão uma vez ainda no seu rosto e disse que ficasse tranqüilo e descansasse. Peguei a mão da mãe e a convidei para sairmos, que os outros também queriam vê-lo. Foi a última vez que tive contato com ele ainda vivo!





sábado, 1 de outubro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LIX






A INTERNAÇÃO DEFINITIVA



Na noite de Domingo voltei a ligar para eles. A Jussane atendeu o telefone e perguntei como o pai estava. “Não muito bem”, foi o que ela disse, “ele continua se queixando do estômago e de gosto de sangue na boca...” Pedi para falar com ele. Quis ouvir dele mesmo como estava. “Ainda não melhorei muito bem”, ele falou. “Nem consegui comer direito; parece que tem um peso no estômago...” A mesma queixa. Sinal de que o seu esôfago fora bastante judiado na última endoscopia. De qualquer forma, lembrei-lhe que no dia seguinte eu estaria indo a Passo Fundo, que ficasse tranqüilo, que logo tudo iria se acomodar.E fui dormir, extremamente preocupado. No dia seguinte eu teria a última reunião mensal do ano na Superintendência e precisava ir.


*******************


Tive que acordar cedo. A reunião era às 9 horas da manhã, mas a estrada estava horrível e havia máquinas tentando recuperá-la, de modo que em alguns trechos o trânsito era parado por alguns minutos, atrasando a viagem. Senti vontade de ligar prá saber como o pai estava, mas imaginei que estivesse descansando. Houvesse algum problema mais e teriam me ligado. Assim, segui viagem. Talvez qualquer outro gerente tivesse ligado para a chefia e pedido dispensa da reunião, alegando que seu pai não estava bem. Seria absolutamente normal. Mas não eu, o grande “caxias”. Eu tinha que ir. A responsabilidade do trabalho acima de tudo... Apesar de que até aquele momento eu não tinha conhecimento do que se passara naquela madrugada de Segunda-Feira.


Quando eu me aproximava do trevo de Coxilha, o celular tocou. Era da farmácia. Atendi e pedi que ficasse na linha enquanto eu contornava o trevo. Estacionei na rua lateral, que leva ao posto de gasolina da rodovia. E ouvi a voz da Jussane. “Marco, teu pai não está nada bem” – disse ela- “Já chamamos uma ambulância e estamos levando ele para Erexim.” Perguntei o que havia acontecido. “Ele passou a noite toda com sangramento. Já empapamos várias toalhas com sangue que sai pela boca. Segundo a tua mãe, ele passou assim a madrugada toda. De manhã falamos com o Dr. Olando e ele disse que temos que levar ele urgente para Erexim. A ambulância está encostando...tenho que desligar...” “Ok, respondi – me mantenha informado. Só vou para a reunião e depois vou direto de Passo Fundo para Erexim...”


Que coisa!


Nem assim a minha ficha caiu. Fiquei me perguntando porque não tinham me ligado de madrugada. Depois a mãe me falou por quê: não quis me acordar porque sabia que eu ia levantar cedo para viajar (vê se pode). Mas, como eu disse, nem assim “caiu a ficha”. Eu continuei no rumo de Passo Fundo, determinado a participar daquela reunião, que devia ser importante, claro, mas será que era mais importante do que o meu pai? Que coisa! Até hoje não me perdôo por essa atitude, embora o restante da viagem me fezdirigir de forma automática, já que meu cérebro estava focado no problema do pai.


Foi então que veio o fatídico telefonema do Nando:


- Marco, a coisa tá complicada. A Jussane está indo junto, na ambulância. O quadro é extremamente grave. O pai está com uma hemorragia digestiva violenta. Já perdeu muito sangue e continua sangrando abundantemente. O Dr. Olando disse que não sabe se ele chegará vivo em Erexim...


Estacionei o carro naquela estrada paralela que tem um pouco antes do trevo da entrada de Passo Fundo, recostei-me no assento e só então raciocinei melhor. O que eu estava fazendo que não estava do lado do meu pai nessa situação de gravidade? Será que o Banco era mais importante que o pai? Será que uma reunião, por mais importante que pudesse ser, ainda assim tinha mais valor do que o meu pai? E (enfim) tomei a decisão: liguei para a Superintendência do Banco e informei que não compareceria porque meu pai estava passando mal e eu precisava acompanhar. E fiquei com um certo remorso quando ouvi da Sureg que “não tinha problema”. “Vai lá e fica com teu pai”, me disse a Mariluz, colega da Superintendência. Aí, sim, “caiu a ficha”. Eu havia subestimado a gravidade do que acontecia com o pai e, por isso mesmo, colocado naquele momento o Banco acima dele. Por um momento, pedi a Deus que ele sobrevivesse àquela situação, porque eu não me perdoaria...


Dei meia-volta e rumei para Erexim. Sabia onde encontrá-los. O Hospital de Caridade vinha sendo quase a segunda casa do pai nos últimos 3 anos...

sábado, 3 de setembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE   LVIII




O ÚLTIMO DOMINGO




Voltamos cedo de Bela vista. Eu não estava confortável e todos sentiam isso ao conversar comigo. O assunto, aliás, foi o mesmo em todo o tempo em que estivemos na casa dos meus sogros. Tudo girava em torno do Bernardo, do tempo que ainda lhe restava. Naquele momento, eu imaginava que ele ainda pudesse sobreviver alguns meses. Os exames eram claros em demonstrar a gradativa e agora acelerada deterioração de seu fígado, já comprometendo também a função de outros órgãos. As palavras do Dr. Paulo, dizendo que não haveria como fazer novos procedimentos de alcoolização, sinalizavam que de agora em diante era “esperar prá ver”. Só se faria procedimentos paliativos, como forma de aliviar evetual sofrimento físico. Quanto tempo ele ainda sobreviveria era uma incógnita. Disse isso aos meus irmãos, já conscientes do que acontecia naquele momento e insinuei à minha mãe, que teimava em não aceitar. Mas o fato é que de agora em diante a tendência seria ver a situação piorar gradativamente. Imaginei meu pai por longos dias acamado, suas funções deteriorando, sua vida aos poucos se esvaindo. Imaginei tê-lo conosco, talvez, até o seu aniversário, em Abril de 2009, quando completaria seus 67 anos. Ou, com alguma sorte, até além disso. Mas não muito mais.

***

Retornamos por Paim Filho, a fim de visitá-lo antes de seguir para São José. Chegamos por volta das 16 horas. Encontramos o pai recostado no sofá, na mesma posição em que o havíamos deixado no Sábado. Era como se nem tivesse de lá se levantado. Não sorriu ao nos ver, como das outras vezes, e demonstrava um ar cansado, uma expressão de desânimo. Tentei brincar com ele, como sempre fazia, mas não obtive nada além de um leve e quase imperceptível sorriso. “Como está, veio???” – era o que eu sempre dizia e que ele sempre rebatia com alguma expressão engraçada. Mas desta vez ele não fez isso. “Não me sinto muito bem...” – foi o que ouvi dele. Sentia ainda aquele “peso no estômago”, uma sensação ruim no abdômen. Quase não havia comido nada e por isso estava meio sem forças. Puxei outras conversas, não sem antes dizer que não se preocupasse, que iria passar, que era ainda efeito da medicação e dos procedimentos realizados pelo Dr. Paulo. Mas bobo ele não era. Devia desconfiar de que algo desta vez estava diferente. Pediu do resultado dos exames, pediu da conversa que tive com o Dr. Paulo. Tentei dissimular, minimizando tudo e repetindo que não se preocupasse, que tudo estava bem. Então ele até começou a conversar um pouco mais e mudamos de assunto. Sentei ao seu lado, peguei sua mão, falei dos planos para o almoço de Natal, do amigo-secreto. E ele pareceu ficar mais tranqüilo. Depois, na cozinha, conversei um pouco com a mãe. Perguntei como ele tinha passado a noite e ela me confidenciou que ele reclamava de sentir gosto de sangue na boca e que às vezes até cuspia sangue no banheiro. Informei que provavelmente ainda eram resquícios do que havia sido feito com as varizes do seu esôfago, mas que ficasse atenta, pois sangramento no tubo digestivo pode ser uma condição grave e ele estava agora com as varizes muito proeminentes, segundo o médico.

Então, enquanto ele continuava assistindo ao programa do Faustão, sentado na mesma posição e sem esboçar mais do que pequenos movimentos, despedimo-nos dele e da mãe e rumamos de volta a São José do Ouro. No dia seguinte eu teria que viajar a Passo Fundo para uma reunião na Superintendência do Banco. Mal sabíamos que aquele tinha sido o último Domingo em que o veríamos com vida.