sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXIII






PARA SEMPRE...



Saí pela porta da frente do Hospital de Caridade, onde já se encontravam a mãe, o Nando, a Mili. Enquanto o corpo dele era preparado para ser levado ao necrotério, fiz todas as ligações possíveis. Liguei imediatamente para a Neu, informando da morte do pai. Depois liguei para a Jussane e pedi que tomasse as providências fúnebres necessárias. O corpo seria buscado pela funerária Tagliari. Fiz contato com o Dr. Paulo, com a rádio Poatã, de São José do Ouro, com a rádio Educadora de São João da Urtiga. Em poucos minutos toda a região saberia que o Bernardo já não estava mais neste mundo. Pedi que a Jussane conversasse com o Padre e marcasse a missa de corpo presente para as 10 horas da manhã. Seria véspera de Natal e com certeza os familiares mais distantes gostariam de retornar para suas cidades a tempo de ainda festejarem o Natal, muito embora para alguns a data com certeza não teria mais  o mesmo brilho.

A mãe estava muda. Não chorava. Acompanhava tudo o que eu fazia com atenção, sem dizer uma única palavra. Fumou um ou dois cigarros escorada no corrimão da escada central, com o olhar perdido no horizonte, como a tentar entender o que acontecia. Naquele momento eu sentia um impulso dentro de mim que me impelia a tomar todas as providências. Em sequência, uma após a outra, automaticamente. Era como se de repente eu soubesse de tudo o que era necessário para um funeral. E naquele momento eu soube. Tudo começou a acontecer de forma natural, cronológica, passo a passo...

Por volta das 14 horas soubemos que o corpo já estava no necrotério e descemos para a parte de baixo do terreno do HC. Havia uma porta grande que levava à garagem e, entrando por ela, à direita, uma outra que levava ao necrotério. Não entramos de imediato, nem deixamos que a mãe chegasse perto daquela porta. Quando finalmente chegou o Nego Tagliari com o carro funerário, trazendo o terno e as roupas que eu havia pedido à Jussane para comprar, finalmente acessamos aquela ala e pudemos ver, então, o corpo que jazia sobre a mesa de concreto, vestido apenas com as fraldas que usava no leito da UTI. O corpo já estava frio, filetes de sangue saíam de seus braços, pelos buracos de agulha feitos em suas veias para administrar medicamentos. Seus olhos continuavam entreabertos. Passei de leve a mão sobre o rosto, de cima para baixo, de modo que suas pálpebras deslizaram e fecharam-se. Vestimos o pai. Uma sensação estranha. Nenhum de nós havia feito isso na vida, nem havíamos tido contato tão próximo com qualquer cadáver, antes. Nem mesmo de algum familiar.  Mas agíamos de forma tão natural com o corpo imóvel do pai, que parecia o contrário. E, por incrível que pareça, eu sentia uma paz muito grande ao tocar o pai ali sobre a laje do necrotério. Depois, ficamos observando o Tagliari, que dava conta dos últimos detalhes para ajeitar o corpo.  As mãos foram cruzadas sobre o peito e os dedos colados com uma cola especial para não se abrirem, assim como os lábios. O terno foi ajeitado, a gravata, a gola da camisa, e seu cabelo foi penteado. Finalmente, o colocamos no caixão que viera desde Paim Filho e só então permitimos que a mãe o visse. Já que era inevitável que o visse morto, queríamos, ao menos,  que ela não ficasse com aquela imagem do pai semi-nu no necrotério. Que o visse já no caixão, arrumado. E ela veio, aproximou-se do caixão e chorou...

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Tudo pronto, finalmente o carro funerário tomou o rumo de Paim Filho, enquanto eu ainda tinha que passar no hospital para acertar alguns detalhes. Depois, com a mãe e mais alguém que não lembro, rumei para Sananduva, onde pegaria a Neu e as meninas para levá-las conosco ao velório do pai.

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Não preciso dar detalhes do velório, que foi igual a qualquer outro, mas ressalto a grande quantidade de pessoas que se fez presente para prestar as últimas homenagens ao cidadão painfilhense Bernardo. Sem dúvida, um dos maiores fluxos de pessoas já visto na casa mortuária do Hospital Santa Terezinha. Na missa, não foi diferente. Nos confortava ver o quanto nosso pai era querido pela população. Poucos parentes deixaram de vir. E os que não vieram foi por motivo de força maior, com certeza. De Nova Prata, veio uma van lotada. De Caxias, todos os primos, mais a tia Maria. De Foz do Iguaçu a Tia Marilene e o tio Armando...

E na missa me emocionei muito em alguns momentos. Chorei copiosamente em outros. Mas o que mais me tocou foi a homenagem que o prefeito Ique prestou ao meu pai. A decretação de LUTO OFICIAL POR 3 DIAS foi demais. Desabei. Era o reconhecimento máximo da comunidade pelo que representava o passamento do meu pai. Senti um misto de orgulho e de agradecimento e virei-me para trás, procurando localizar o prefeito para agradecer-lhe ao final da missa, o que só consegui quando já deixávamos a Igreja e nos preparávamos para ir até o cemitério. Lembro de ter dado um abraço emocionado no Ique e de ter dito um “muito obrigado”. Ele ficou com os olhos marejados e só disse: “ele merecia isso...” Jamais esqueceremos esse gesto do então Prefeito. Aliás, foi a coroação de uma amizade de décadas de nossas famílias.

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No cemitério, grande número de pessoas acompanhou as últimas homenagens prestadas ao Bernardo. Feitas as orações, despedímo-nos, sob forte emoção. E Enquanto o caixão era fechado e colocado no túmulo, pedi uma salva de palmas àquela figura querida que agora nos deixava. E o som das batidas ritmadas das mãos de todo o público presente naquele momento ecoou pelo vale do Inhandava que corria ao fundo...

Foi assim, que naquele fatídico Natal de 2008...ELE SE FOI...

PARA SEMPRE...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE LXII




               O FIM...



Não dormi direito naquela noite. Acho que ninguém da família dormiu. Fui vencido pelo cansaço e apaguei depois de um acesso de choro convulsivo que empapou o travesseiro antes de a Neu e as meninas irem dormir. Mas acordei várias vezes durante a noite, pensamento fixo no pai, sensação de que a qualquer momento poderíamos receber algum telefonema de Erechim. Por incrível que pareça eu ainda pretendia ir até o Banco para colocar alguns papéis em ordem e acompanhar de lá a situação do pai, mantendo contato telefônico com a Mili. Até hoje me culpo por isso. Talvez eu devesse ter ficado lá no Hospital de Caridade junto delas, dormisse ou não, acompanhando ele. Talvez ele sentisse a minha presença, que sempre lhe dera segurança. Talvez seu subconsciente,  em seu corpo quase morto, clamasse por mim ao seu lado... Teimosamente, no entanto, o meu cérebro não conseguia compreender que naquele leito da CTI jazia um corpo já sem forças para reagir, caminhando rapidamente para o fim. Estranhamente, eu, que durante três anos busquei preparar a todos da família para a morte inevitável do pai, relutava agora em entender que tudo estava chegando ao fim. Restava-me ainda um fio de esperança de que ele voltasse uma vez mais para casa. Que se fosse para morrer, que morresse lá, na sua cidade natal, junto de seus amigos e familiares. Mas eu parecia não sentir que isso fosse acontecer agora. E ainda ficava imaginando como seria aquele Natal se o pai tivesse que ficar alguns dias no hospital. Como faríamos o “amigo-secreto” sendo que alguém teria que ficar cuidando dele no hospital? Iríamos mesmo comemorar o Natal sem o pai e a mãe presentes?

E foi assim que amanheceu aquele 23 de Dezembro de 2008.

Não era ainda 6:30h da manhã quando saltei da cama. Me vesti para ir trabalhar. Minha intenção era ficar no Banco até o meio-dia e depois voltar a Erexim, dependendo das notícias. Antes, porém, um telefonema para a Mili. Teria ele se recuperado durante a noite? Teria seu fígado reagido uma vez mais, com o soro e os litros de sangue administrados em sua veia?

Liguei.

- Mili, como está o pai?

- Ia te ligar agora mesmo. O médico acabou de sair da CTI e disse que ele está muito mal! Muito mal mesmo! Acho melhor vocês virem logo...

Caiu então a ficha. Era o fim. Liguei para o Nando e pedi que viessem até Sananduva. Eu os esperaria para irmos todos a Erechim. Liguei em seguida para a Rosane, minha gerente adjunta e informei que naquele dia eu não iria trabalhar. Meu pai passava mal.

Saímos pouco depois das 10 horas da manhã, já preparando o espírito para o que viria. Nem lembro quem foi comigo. Também não lembro se alguém foi com outro carro, acho que o Digo. Só sei que chegamos ao hospital faltando 10 minutos para o meio-dia. E rumamos imediatamente para a CTI, onde já estavam a mãe e a Mili.

Quando cheguei à ante-sala, onde elas haviam passado a noite, conversamos rapidamente. A Mili contou de um sonho que a mãe tivera naquela noite, em que o pai teria chegado até perto dela e dito algo como “desta vez eu vou...” E a mãe teria chorado muito. Contou alguns detalhes do que acontecera durante a noite no hospital, de como se haviam acomodado para tentar dormir.

E enquanto conversavam, pedi onde ficava o banheiro e me dirigi até lá.

Mal acabei de fechar a porta e ouvi um grito, seguido de batidas na porta do banheiro.

- Marco, Marco, venha rápido...ele está indo...!

Saí rapidamente do banheiro e corri até a CTI, abrindo caminho por entre as pessoas que se acotovelavam na fila aguardando para visitar familiares no corredor que antecede a grande sala. No caminho, cruzei com a mãe em desespero sendo amparada pela Mili. Fizeram-me sinal para que entrasse. Ao lado do leito estava o Digão, segurando a mão do pai e olhando para o visor onde uma linha reta e um apito contínuo indicavam que aquele coração já não pulsava. Embora eu ainda tivesse conseguido ver duas ou três batidas fracas serem registradas pelo eletrocardiógrafo. Eram exatamente 12 horas do dia 23 de Dezembro de 2008. Seu corpo, ainda mais amarelo, permanecia quente. Seus olhos, entreabertos. E a boca parecia sorrir, deixando a impressão de que morrera tranquilamente, sem sofrimento. Lembro que a única coisa que me ocorreu fazer naquele momento foi sussurrar em seu ouvido ...”vai tranqüilo, meu pai, vai tranqüilo...” E saí rapidamente da sala. Precisava avisar o mundo que acabara de falecer o meu maior amigo.