terça-feira, 29 de março de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE    LII


                BEM...AINDA...
                                                              Almoço de Natal  2007



As festas de final de ano, em 2007, foram como as de antigamente. No Natal reunimos a família, em Paim. O dia primeiro de Janeiro eu passei com a família da Neu, em Bela Vista. O pai continuava muito bem. Ele parecia ter voltado à sua rotina de sempre. Em que pese seu aspecto envelhecido e sua magreza, já não lembrava aquele homem tão doente do Natal de 2006. E estava feliz, assim como todos nós. Durante o almoço natalino fizemos o tradicional “amigo secreto” e trocamos presentes, entre apertados abraços. Mas não havia maior presente do que tê-lo ali, vivo, e com a saúde relativamente estabilizada. No meio do ano havíamos perdido a vó Eli e o tio Meca, em Nova Prata, com diferença de poucos dias. Com exceção do pai, estivemos todos lá para os velórios, onde também reencontramos todos os familiares pratenses. Em meio à tristeza pelas perdas, perguntavam sobre o pai e eu sentia uma satisfação enorme ao informar de sua boa evolução. Evidente que todo mundo mantinha os pés no chão com relação ao seu caso. Todos sabíamos que tratava-se de uma frágil situação de estabilidade e que a doença ainda estava presente em seu fígado, podendo manifestar-se com maior ou menor intensidade a cada pouco tempo. Ninguém duvidava de que seria difícil ele escapar dessa. Mas era preciso curtir aquele bom momento, torcendo para que durasse o máximo possível. E até acreditar no milagre, por que não?

Eu continuava acompanhando minuciosamente os exames de sangue. As enzimas hepáticas vinham se mantendo próximo do normal. O Tempo de Protrombina oscilava entre 50 e 60% - um índice bem razoável para as condições do fígado dele. E até o marcador de tumores “alfafetoproteína” estava se mantendo estável. Eu informava o Dr. Sílvio a cada resultado e ele acompanhava, me devolvendo um “parecer” à distância. Ficava satisfeito com as informações, mas em nenhum momento eu senti dele alguma expectativa demasiado otimista com relação ao Bernardo (ou “seu Egídio”, para ele). A experiência lhe dizia que a cura não seria possível naquele fígado tão avariado. Sem a substituição do órgão, já descartada pelos motivos mencionados lá atrás, todo tratamento seria paliativo e a aposta era apenas prá saber por quanto tempo as funções hepáticas deficientes o manteriam vivo.

Em que pese a tranqüilidade, era preciso continuar o tratamento e as viagens a Erechim.

E então, já no primeiro exame de 2008, em Fevereiro, tivemos uma pista de que a doença iria começar a se agravar. O exame de ultrassom revelava que os dois nódulos haviam crescido com maior velocidade. Um deles já ultrapassava, pela primeira vez, os 2cm. E aquele que até então parecia ter sido eliminado voltara a ficar ativo e também se aproximava desse tamanho. Não bastasse isso, havia surgido um terceiro, bem pequeno, de menos de 1 cm. Foram necessárias três alcoolizações, desta vez. Mas o pai reagiu bem e o tratamento aconteceu da maneira habitual. Fui buscá-lo, como de praxe, e deixei ele a mãe em Paim. A mãe reclamava de muito cansaço após três dias de hospital, tendo dormido novamente no chão por mais duas noites. Mas praticamente nada fora diferente das vezes anteriores.

A não ser por um detalhe.

O laudo do ultrassom não havia sido entregue no hospital, pois não ficara pronto. No meio da semana, um amigo foi até o laboratório, em Erechim, e retirou os exames.

O pai não era bobo. Meio século de experiência no ramo da saúde lhe davam a condição de interpretar empiricamente um laudo médico. No Sábado, quando cheguei para mais uma visita, ele buscou a pasta com os documentos do hospital e disse “não gostei nada dos exames”. Tomei logo de suas mãos o laudo da ultrassonografia e fui direto à descrição do radiologista. E aí descobri a razão de sua preocupação. Estava clara a informação sobre o crescimento dos nódulos e o surgimento do terceiro. A imagem realmente preocupava. Era possível observar uma área maior do seu fígado comprometida pelas alcoolizações. Três, desta vez. Nenhuma surpresa prá mim, mas um choque para ele, que vinha tão otimista em razão de sua boa condição nos últimos meses. Prá mim, naquele momento, ficou evidente que ele sofrera um revés em seu otimismo, o que não podia acontecer. O alto astral era imprescindível para que ele continuasse bem, para que seu fígado continuasse funcionando, para que seu organismo reunisse forças para continuar lutando contra o inimigo. Mas não havia jeito de dizer o contrário. Lembro que parei de ler, por alguns instantes, escolhendo as palavras que lhe diria. Eu sabia que mais do que o parecer do laudo o que eu falasse seria decisivo para seu astral. Lembro até hoje, palavra por palavra o que eu lhe disse naquele momento. “Pai – falei – realmente esse laudo me deixa um pouco preocupado, porque surgiu um outro nódulo, o que a gente não esperava. No entanto, as alcoolizações vem funcionando muito bem. É possível, muito provável até, que esse tratamento, com três alcoolizações e uma quantia maior de álcool instilada no teu fígado possam matar um número maior de células vivas. Isso é verdade. Mas como o teu fígado se consolidou num tamanho razoável, pode muito bem absorver mais esse impacto. Não vejo tanto problema nisso, não. Acho que é só dar um tempo um pouco maior para a recuperação dele...” Se ele acreditou nisso ou não, eu não sei, mas acenou com a cabeça como que concordando com o que eu dizia. Logo em seguida mudamos de assunto e ele pareceu já um pouco menos preocupado. Eu não. Mais abaixo no texto do médico havia um item que começava a me preocupar ainda mais. Dizia “...varizes esofágicas de moderado calibre...”



terça-feira, 8 de março de 2011

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE    LI 


                                            
O ANO BOM




2007 representou mesmo o melhor período de seu estado de saúde. A cada 60 ou 90 dias voltávamos a Erechim para sequência do tratamento e ficávamos felizes com as tomografias realizadas, pois os nódulos permaneciam sob controle. Houve momentos em que os exames se mostraram tão positivos que parecia mesmo que o pai havia entrado num período de recuperação ascendente. Foi várias vezes a Bento Gonçalves com a mãe e outras tantas esteve em nossa casa, para almoçar e conviver conosco, sempre junto com o Nando e sua família. Claro que algumas de suas internações foram mais complicadas que outras, demandando tempos de recuperação um pouco maiores, mas não se repetiu a principal complicação, que era a formação de excesso de líquido no abdômen. Por outro lado, um outro problema passou a me preocupar. A cada exame tomográfico uma nota destoava dos resultados positivos. Dentre as descrições de normalidade dos demais exames, vinha sempre uma observação: “varizes esofágicas” . Eu não dava muita importância a esse detalhe, mas o Dr. Paulo a certa altura viria a me alertar sobre a possibilidade de hemorragias internas em razão disso. Era uma das causas mais freqüentes de mortes entre os pacientes cirróticos. Mas até então eu pouco considerava a questão da cirrose no pai. Nosso foco eram os tumores. O alerta do Dr. Paulo, no entanto, me deixou um tanto preocupado. Soava como se ele quisesse me preparar para um possível problema futuro. Ele nunca tinha apresentando qualquer indício de sangramento no seu aparelho digestivo, por sorte. Mas decerto a experiência do médico lhe apontava para essa possibilidade. E então, a cada novo exame, por ocasião dos procedimentos de controle, passou-se a realizar também endoscopias.


Com o líquido abdominal sob controle, as funções do fígado relativamente bem preservadas, e nenhuma outra complicação aparente, o pai passou a comportar-se quase como se não estivesse doente. Em que pese o vigor físico ter ficado definitivamente para trás, a vida quase voltou ao normal, para nossa alegria. Nem pensávamos tanto que ele estava em uma sobrevida. Era como se de repente ele tivesse tão somente envelhecido e ficado mais fraco. E como mudara o seu aspecto. Dois anos antes, aos 63, era aquele “jovem sexagenário” forte, cheio de vida, alegre e brincalhão e agora um “ancião” de 65 anos, arqueado, magro e enfraquecido pela doença. Mas isso não lhe tirava o bom-humor e a simpatia. As pessoas sentiam prazer em cumprimentá-lo e ver que apesar de tão grave doença ele aparentava tranqüilidade e parecia estar vencendo o inimigo. E quantos amigos lhe visitaram. Pessoas que há muito tempo não lhe viam fizeram questão de uma visita. Recebeu amigos de infância, amigos do Paraná, de Santa Catarina, de Porto Alegre. Muitos deles incrédulos com a notícia de sua doença. Ficavam chocados com sua aparência envelhecida, mas contaminavam-se com seu otimismo e seu bom-humor. Também foram sentidas algumas ausências. Alguns amigos, daqueles que diziam que o pai estava em sua lista de melhores amigos, não o visitaram em momento algum. Talvez tivessem suas razões, talvez não se sentissem bem vendo o pai daquele jeito. Mas ale acusou a ausência desses amigos. Ainda bem que foram poucos. A imensa maioria de seus amigos mais chegados e até de outros nem tanto assim, foram até a casa dele para prestar solidariedade, para ver como ele estava, para perguntar se precisava de algo. E isso bastava para deixá-lo satisfeito e ainda mais contente.                             O pai em foto de 1977 

O ano de 2007 transcorreu assim. Ele trabalhou no plantão da farmácia, jogou muito baralho no Clube com os amigos, visitou seus compadres, freqüentou a missa, foi à Romaria de N.Sa. de Caravággio. Comemoramos com ele a Páscoa, seu aniversário em 25 de Abril, o meu aniversário em Maio, o Natal... Foi um ano muito bom. Foi o ano em que quase esquecemos que ele estava doente. Quase.                     


                                                                                                                                                                                       

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