PARTE XLIX
COMPLICANDO...
Nos dias seguintes ao retorno a Paim Filho, o pai começou a apresentar um quadro um pouco diferente do habitual. Sempre após os procedimentos de alcoolização havia um ou outro probleminha, que se estabilizava aos poucos, em alguns dias. Desta vez, no entanto, a produção de líquido no abdômen não cessou. Nem mesmo com a prescrição médica de aumento da dose de diuréticos. O quadro agravou-se quando o líquido começou a invadir um dos pulmões, prejudicando a respiração. Assim, fui surpreendido numa manhã com um telefonema da Jussane, indicando que o pai estava sendo levado às pressas para Erechim. No oxigênio. Havia se acumulado tanto líquido que o pulmão direito estava totalmente cheio, não dando mais conta de oxigenar o sangue dele. Era um quadro grave, que necessitava de uma urgente intervenção médica. Em situações normais, o acúmulo de líquido nos pulmões pode ser resolvido com a simples introdução de uma agulha através das costas, mas a situação de fato requeria um tratamento mais urgente e incisivo, razão pela qual fora necessário conduzi-lo novamente ao Hospital de Caridade.
Novamente pedi licença aos colegas e deixei o Banco mais cedo, rumando para Erexim. Na passagem por Paim Filho, busquei a mãe, que foi comigo, já preparada com pertences prevendo uma internação mais prolongada do pai.
Quando chegamos ao hospital já o encontramos alojado no quarto, sem oxigênio, respirando normalmente. O líquido fora drenado e seus pulmões estavam funcionando bem. Havia uma medicação sendo aplicada junto com o soro e ele estava acordado. Uma enfermeira media a pressão sangüínea e a temperatura e indicava estar tudo bem. Indaguei pelo médico, a fim de saber sobre o quadro dele. O Dr Paulo já havia passado e prescrito a medicação, mas a enfermeira indicava que eu falasse com o pneumologista que o havia recebido no hospital e conduzido os procedimentos de drenagem do líquido pulmonar. Encontrei-o no posto médico da ala, apresentei-me e ele começou a explicar o que havia ocorrido:
“Na verdade,- disse -os procedimentos realizados no fígado do seu pai acabam por causar uma espécie de paralisia nas funções do órgão. É uma reação normal, que pode durar de algumas horas a alguns dias. É o que se costuma chamar de descompensação da cirrose. A formação de líquido abdominal, a chamada ascite, é indicativo dessa descompensação, num quadro de insuficiência hepática como a do Seu Bernardo. No momento, retiramos todo o líquido e ele está bem. O problema é que observamos que imediatamente após a retirada, o pulmão voltou a apresentar líquido, o que mostra que persiste ainda a causa. Vai ser necessário que ele fique em observação e seja acompanhado de perto. Vamos ver se a produção de líquido estabiliza ou ao menos deixa de penetrar no pulmão...”
“Mas então, Doutor, - perguntei preocupado – esse quadro pode se estender?...”
“Pode. Infelizmente há casos em que a formação de líquido não cessa mais...”
“Mas o que fazer, se for o caso?”
“Bem, - disse ele – existem alguns procedimentos para aliviar o sofrimento dos pacientes. Um deles é a injeção de uma substância diretamente na pleura, literalmente lacrando o espaço existente entre as membranas e impedindo a passagem do líquido do abdômen para os alvéolos pulmonares. Só que isso provoca certo sofrimento no ato de respirar... Outra solução é a implantação de uma válvula externa, que é acionada toda vez que o paciente sente que existe líquido no pulmão. A pressão exercida faz com que o líquido retorne ao abdômen...”
Eram procedimentos paliativos, aplicados em pacientes com pouco tempo de vida.
Recusei-me a aceitar isso. Não era hora ainda. Naquele momento eu não admitia que meu pai pudesse morrer tão logo. Não era possível. Ele vinha tão bem, se recuperando, os nódulos controlados... Não, não era hora de pensar em procedimentos tão radicais. No meu íntimo, eu ainda acreditava numa sobrevida mais longa, acreditava que pudéssemos eliminar os nódulos, que o fígado dele ainda tinha possibilidade de continuar sua regeneração e aliviar a insuficiência hepática. Pensava no surgimento de alguma alternativa – células-tronco, ou sei lá o quê - que pudesse curá-lo.
E voltou aquele nó na garganta, aquela angústia que me acompanhava desde a descoberta de sua doença.
“Não, Doutor – disse eu de repente, - não vamos fazer isso. Ainda não. Vamos deixar esse procedimento para quando não houver mais nenhuma possibilidade de recuperação. Neste momento não. Eu peço que o Sr. o acompanhe, medique, adote os procedimentos necessários, mas nós queremos tentar ainda recuperá-lo. Em casa. Quando for possível, libere o pai. Nós o levaremos e cuidaremos dele em casa, daremos a medicação certinha...Tenho certeza que ele ainda vai se recuperar...”
Acho que o pneumologista se sensibilizou com aquela determinação do filho do seu paciente e concordou com a idéia.
Assim, o pai permaneceu no hospital por mais dois dias. No Sábado, pela manhã, eu estava de volta para buscá-lo. Ele saiu caminhando. E bem. O líquido diminuira bastante e o Dr. Paulo nos falou que bastaria aumentar um pouco a dose de diuréticos para estabilizar de vez. A mãe ficou as duas noites com o pai. Dormiu no chão, sobre um colchão improvisado com um cobertor. Mas havia valido a pena. Na saída, ainda no corredor, deparei-me com o pneumologista. Ao cumprimentá-lo, ouvi dele: “É, você tinha razão...Ainda dá prá controlar.”
Ao meio-dia estávamos em Paim. Um longo abraço, um beijo na face dos dois e aquele constrangedor “obrigado, filho”... (Pai, nem por toda a eternidade eu conseguiria compensar o que vocês fizeram por mim).
Voltei para São José do Ouro sem aceitar o convite de almoço da mãe. Estavam muito cansados. E o pai precisava repousar. Apenas pedi que me mantivessem informado do estado dele. Se preciso fosse, eu voltaria imediatamente.