sábado, 23 de outubro de 2010
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
NO NATAL, ELE SE FOI...
parte XLIV
A CAUSA...
Mas a farmácia era seu ganha-pão. A aposentadoria havia sido uma grande decepção. Durante anos a fio, com muito sacrifício, ele havia recolhido valores mensais equivalentes a 7 salários-mínimos, pensando em aposentar-se com uma renda que lhe permitisse sustento e dignidade nos últimos anos de vida, mas a crueldade de nosso sistema previdenciário acabou lhe deixando com apenas 2,8 salários. Isso naquela época. A defasagem ao longo do tempo transformara seu soldo em pouco mais de um salário e meio. Some-se a isso o pagamento do plano de saúde, de mais de r$ 350,00 mensais e pode-se deduzir que não havia meio de ele parar de trabalhar, mesmo após os 60 anos. Estava indefinidamente adiado o seu sonho de descansar e ver-se livre do stress de administrar a farmácia. Foi obrigado a resignar-se e adiar seus planos. Era financeiramente inviável parar naquele momento. Mas era algo doloroso para quem sentia indescritível prazer em simplesmente viver a vida, estar com os amigos, desfrutar do convívio familiar. Participar de um churrasco entre amigos era para ele momento de máxima felicidade. Por isso mesmo acabou convencendo a mãe, um tanto “caseira” e arredia quando se tratava de sair de frente da TV, em acompanhá-lo nas festas de capela, nos almoços com amigos no interior, nos eventos do Rotary. E acabou que isso se transformou em uma válvula de escape, que aliviava-lhe a sensação de frustração que sentia por ter que estender sabe-se lá por quantos anos ainda a sua atuação junto à farmácia, mesmo depois de aposentado. Seria diferente se não fosse o stress gerado pelo problema do bioquímico responsável. Algumas multas aplicadas pelo Conselho Regional de Farmácia lhe tiravam o sono. Ele era um “cumpridor da lei”. Sofria com qualquer situação que o colocasse fora disso. De certa forma, não estar conseguindo adequar-se à exigência legal dava-lhe uma sensação de ser um criminoso. Angustiava-se de verdade com isso. Não fosse assim e tenho certeza de que ele continuaria feliz no balcão da sua farmácia até o fim da vida. Os problemas financeiros também existiam, lógico, mas isso era algo que podia ser resolvido com algumas medidas simples, alguns controles, algumas mudanças que ajudávamos a propor. Lembro das tantas conversas que tivemos sobre o assunto e dos inúmeros conselhos que eu lhe dava com relação às finanças da empresa, com base na minha experiência no Banco. O problema, de fato, não era esse.
De alguma forma, no entanto, ele havia mudado seus hábitos após a aposentadoria. Já não ficava na farmácia em tempo integral, deixando para a Jussane as principais tarefas. A mãe ajudava no atendimento, a Jussane controlava o estoque. Com ele ficavam os controles das contas e os pedidos de mercadoria. Por algum tempo. Logo também isso passaria a ser tarefa da Jussane.
E assim o seu horário na farmácia foi ficando cada vez menor.
Estava criado um grande problema.
Antes das 10 horas da manhã ele pegava o seu fusquinha e ia para os Bancos. Depois descia até o bar do Santana. E ali começava a “via sacra”. Um aperitivo com os amigos ali, outro no bar do Vineto, mais um no Zé Galon, terminando no Clube. Sem se dar conta, ele começava a abusar do consumo de álcool. Diariamente. E esse era o maior problema. Ele não ingeria grandes quantidades de bebida alcoólica, mas o fazia com freqüência. Diariamente. Há muitos anos. Não chegou a se tornar um alcoólatra (talvez por não ter dado tempo), mas seu fígado foi sendo aos poucos intoxicado. Daí à formação de uma cirrose foi um passo. Doença silenciosa essa. Nenhum sintoma, nenhuma dor, nenhum mal-estar. E de repente você descobre que seu fígado está doente. Pior para o pai, que além de tudo ainda foi extremamente azarado. Digo isso porque conheci muita gente que desenvolveu cirrose e após descobrir o problema simplesmente parou com a bebida e viveu até os 80-90-100 anos. Para o Bernardo foi diferente: talvez por alguma predisposição genética a cirrose desencadeou logo um tumor. De fígado. Um dos mais mortais de todos os tumores humanos. Que lição isso foi para todos nós, da família. Não que tenhamos nos tornado abstêmios em função disso, mas a verdade é que reduzimos drasticamente o consumo de bebida alcoólica. Porque descobrimos, pela mais cruel das vias, que todos nós temos um fígado. E que esse órgão é tão vital quanto o coração. E que quando para de funcionar, morremos.
A CAUSA...
Mas a farmácia era seu ganha-pão. A aposentadoria havia sido uma grande decepção. Durante anos a fio, com muito sacrifício, ele havia recolhido valores mensais equivalentes a 7 salários-mínimos, pensando em aposentar-se com uma renda que lhe permitisse sustento e dignidade nos últimos anos de vida, mas a crueldade de nosso sistema previdenciário acabou lhe deixando com apenas 2,8 salários. Isso naquela época. A defasagem ao longo do tempo transformara seu soldo em pouco mais de um salário e meio. Some-se a isso o pagamento do plano de saúde, de mais de r$ 350,00 mensais e pode-se deduzir que não havia meio de ele parar de trabalhar, mesmo após os 60 anos. Estava indefinidamente adiado o seu sonho de descansar e ver-se livre do stress de administrar a farmácia. Foi obrigado a resignar-se e adiar seus planos. Era financeiramente inviável parar naquele momento. Mas era algo doloroso para quem sentia indescritível prazer em simplesmente viver a vida, estar com os amigos, desfrutar do convívio familiar. Participar de um churrasco entre amigos era para ele momento de máxima felicidade. Por isso mesmo acabou convencendo a mãe, um tanto “caseira” e arredia quando se tratava de sair de frente da TV, em acompanhá-lo nas festas de capela, nos almoços com amigos no interior, nos eventos do Rotary. E acabou que isso se transformou em uma válvula de escape, que aliviava-lhe a sensação de frustração que sentia por ter que estender sabe-se lá por quantos anos ainda a sua atuação junto à farmácia, mesmo depois de aposentado. Seria diferente se não fosse o stress gerado pelo problema do bioquímico responsável. Algumas multas aplicadas pelo Conselho Regional de Farmácia lhe tiravam o sono. Ele era um “cumpridor da lei”. Sofria com qualquer situação que o colocasse fora disso. De certa forma, não estar conseguindo adequar-se à exigência legal dava-lhe uma sensação de ser um criminoso. Angustiava-se de verdade com isso. Não fosse assim e tenho certeza de que ele continuaria feliz no balcão da sua farmácia até o fim da vida. Os problemas financeiros também existiam, lógico, mas isso era algo que podia ser resolvido com algumas medidas simples, alguns controles, algumas mudanças que ajudávamos a propor. Lembro das tantas conversas que tivemos sobre o assunto e dos inúmeros conselhos que eu lhe dava com relação às finanças da empresa, com base na minha experiência no Banco. O problema, de fato, não era esse.
De alguma forma, no entanto, ele havia mudado seus hábitos após a aposentadoria. Já não ficava na farmácia em tempo integral, deixando para a Jussane as principais tarefas. A mãe ajudava no atendimento, a Jussane controlava o estoque. Com ele ficavam os controles das contas e os pedidos de mercadoria. Por algum tempo. Logo também isso passaria a ser tarefa da Jussane.
E assim o seu horário na farmácia foi ficando cada vez menor.
Estava criado um grande problema.
Antes das 10 horas da manhã ele pegava o seu fusquinha e ia para os Bancos. Depois descia até o bar do Santana. E ali começava a “via sacra”. Um aperitivo com os amigos ali, outro no bar do Vineto, mais um no Zé Galon, terminando no Clube. Sem se dar conta, ele começava a abusar do consumo de álcool. Diariamente. E esse era o maior problema. Ele não ingeria grandes quantidades de bebida alcoólica, mas o fazia com freqüência. Diariamente. Há muitos anos. Não chegou a se tornar um alcoólatra (talvez por não ter dado tempo), mas seu fígado foi sendo aos poucos intoxicado. Daí à formação de uma cirrose foi um passo. Doença silenciosa essa. Nenhum sintoma, nenhuma dor, nenhum mal-estar. E de repente você descobre que seu fígado está doente. Pior para o pai, que além de tudo ainda foi extremamente azarado. Digo isso porque conheci muita gente que desenvolveu cirrose e após descobrir o problema simplesmente parou com a bebida e viveu até os 80-90-100 anos. Para o Bernardo foi diferente: talvez por alguma predisposição genética a cirrose desencadeou logo um tumor. De fígado. Um dos mais mortais de todos os tumores humanos. Que lição isso foi para todos nós, da família. Não que tenhamos nos tornado abstêmios em função disso, mas a verdade é que reduzimos drasticamente o consumo de bebida alcoólica. Porque descobrimos, pela mais cruel das vias, que todos nós temos um fígado. E que esse órgão é tão vital quanto o coração. E que quando para de funcionar, morremos.
(Se a juventude de hoje, que vejo consumir cerveja como se fosse água, que vejo emendar um porre no outro durante os finais de semana e invariavelmente em todas as festas - se essa juventude tivesse conhecimento do mal que estão causando ao seu fígado e das consequências de perder definitivamente esse órgão vital, certamente pensaria em rever seus conceitos...)
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
NO NATAL, ELE SE FOI...
PARTE XLIII
STRESS...
De alguma forma, por ironia do destino, era apenas agora, por força do enfrentamento de tão grave doença, que ele finalmente teria direito a um descanso de “aposentado”. De fato, desde 1995 quando se aposentara por tempo de contribuição ao INSS, ele vinha se queixando de que estava cansado do trabalho na farmácia. Não que fosse uma atividade cansativa. Ao contrário, atender no balcão lhe era prazeiroso. Lá ele tinha contato com pessoas. Tinha uma rotina com horários que ele próprio determinava e dentro dos quais se organizava de forma a mesclar o trabalho com o lazer. Além do fato de que tinha mesmo prazer em atuar numa atividade ligada à saúde, onde podia exercitar aquilo que mais gostava: ajudar pessoas. Mas o que estava lhe deixando desgostoso e estressado era a dificuldade que enfrentava no cumprimento à legislação cada vez mais rigorosa com relação às farmácias. Antigamente não era assim. De certa forma , lhe incomodava o fato de ter sido funcionário de dois patrões e tê-los visto prosperar naquele ramo, praticamente sem dissabores dessa ordem. Quando, após um hercúleo sacrifício, conseguiu finalmente tornar-se dono de seu próprio negócio (ou de metade dele) deparava-se agora com problemas que não foram enfrentados por João Lacerda e Moacir Guimarães, os antigos patrões. A concorrência, que antes não havia, agora tirava boa parte do faturamento e reduzia suas possibilidades de ter uma situação financeira estabilizada. Não bastasse isso, havia alguns anos que a falta de bioquímicos no mercado era a pedra no sapato dos donos de farmácia das pequenas cidades do interior. E a cada pouco tempo uma nova lei aumentava ainda mais as exigências. Seguidamente referia-se ao tempo em que era apenas um balconista na antiga farmácia Lacerda e lembrava que o seu João era o próprio responsável legal pelo estabelecimento. Naqueles tempos, bioquímico era profissional raro no mercado. Tanto mais naqueles cantinhos escondidos do Rio Grande, isolados do mundo por estradas de chão que causariam arrepios nos fabricantes de automóveis. A exigência do bioquímico veio bem depois. Mesmo no tempo do Moacir, um farmacêutico podia assinar como responsável pelo estabelecimento sem precisar estar presente o tempo todo. Bastava que uma vez ao mês, por exemplo, passasse por lá para assinar o livro de ocorrências. Ganhava para isso, já era uma despesa a mais. Mas não havia pressão alguma da entidade de classe ou do governo cobrando a atuação do profissional. Nos últimos anos, no entanto, a lei recrudecera. E a exigência de um farmacêutico em tempo integral no horário de atendimento foi a gota d’água. O Conselho Regional de Farmácia, na defesa de seus interesses, pressionava o governo, que criava e regulamentava leis. Mas não havia ainda profissionais suficientes para atender ao mercado. Durante vários anos o pai contratava um bioquímico e pensava ter resolvido o problema. Mas logo ali adiante o perdia para um centro maior e recomeçava o stress, que se traduzia em sucessivas notificações e multas aplicadas pelo CRF. Essa situação lhe causava grande desconforto. Vivia nervoso, irritado. E só relaxava mesmo quando saia para se encontrar com os amigos, jogar seu baralhinho e bebericar aperitivos. Não foram poucas as vezes em que pediu minha ajuda para tentar encontrar um profissional que se dispusesse a ser o responsável técnico da Farmácia Lacerda e representasse o fim daquele tormento. E várias vezes eu consegui isso. Mas era sempre por pouco tempo. Logo estávamos nós novamente na “estaca-zero”. E ele estava cada vez mais intolerante com essa situação. Já não demonstrava um mínimo de paciência para lidar com isso e logo “chutava o balde”. Notava-se claramente que já não agüentava mais. E assim os períodos em que ficava na farmácia foram se tornando cada vez mais curtos, de modo que a mãe e a Jussane passaram a ser, de fato, as atendentes. Sua inconformidade passou a servir de pretexto para ausentar-se. Longe da empresa, acho que conseguia relaxar e sentia-se um pouco mais feliz.
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