domingo, 27 de junho de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXVIII



O RECOMEÇO



A quantidade de remédios que os médicos lhe haviam recomendado até que era bem menor do que eu esperava. Um diurético para diminuir a ascite(acúmulo de líquido no abdômen), um comprimido para auxiliar na digestão e uma injeção para manter a estabilidade do sangue. Junto vieram por escrito as recomendações ao Dr. Paulo Cavazzola, o gastroenterologista do Hospital de Caridade de Erexim que iniciara a investigação da sua doença e que agora acompanharia o seu tratamento de recuperação, enquanto esperava-se a lenta regeneração do fígado. No mais, restava-nos esperar, torcendo para que o tumor tivesse sido totalmente eliminado e que a doença não viesse a retornar.
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No primeiro final de semana após o seu retorno, tínhamos que ir a Paim Filho de qualquer maneira e fazer aquele tradicional churrasco dominical com toda a família reunida. Seria o primeiro desde Dezembro de 2005. E foi emocionante ver a família toda reunida novamente.
Toda em termos, pois a Mili e o Digo estavam em Bento. Mas sempre nos reuníamos junto com o pai, a mãe e a família do Nando. “Os de Bento” vinham mais esporadicamente, de modo que na maioria das vezes era essa a turma que se reunia para almoçar aos domingos. E voltar a fazer um almoço onde não faltava ninguém, como tememos tanto que viesse a acontecer durante os últimos meses, foi bom demais. Tiramos fotos, curtimos aquele momento como nunca antes havíamos curtido. E ao final do almoço, em que o pai comeu churrasco depois de tanto tempo, ainda sobrou espaço para um joguinho de baralho, coisa que ele adorava. Chamou-me a atenção que ele comeu de tudo. Em pequenas quantidades, é verdade, mas degustou a carne, a salada, a massa. E não aconteceu como lá no hospital, onde seu estômago rejeitava tudo o que comia. Ao contrário, perguntei como se sentia e ele disse “muito bem, estava com saudade de comer churrasco...” Foi bom ouvir isso.
Interessante: pela primeira vez em muitos e muitos anos nos demos conta de que a bebida a acompanhar o churrasco foi unicamente... refrigerante. O álcool teria que ser banido de nossos almoços. E tivemos consciência naquele momento de que mesmo sem bebidas de álcool era possível tornar o almoço tão prazeroso quanto nos tempos em que nos fartávamos de cerveja enquanto o pai
mandava ver no vinho, para depois cair no sono até as quatro da tarde – nem via quando íamos embora. Dessa vez foi diferente. Ele foi dormir, cansado que estava, mas não sem antes jogar uma partida de canastra. Foi estranho e confortantemente diferente aquele almoço dominical. Ele próprio sabia que nunca mais poderia tomar um único gole de sua bebida preferida. Nunca mais. Mas também sabia que esse seria o preço a pagar para continuar vivo. Pelo tempo que Deus agora permitisse.
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Nos dias que se seguiram ele realizou os primeiros exames no Hospital Santa Terezinha, de Paim Filho, acompanhado pelo Dr. Olando Caús. Os resultados apontavam um fígado em recuperação, com os índices ainda muito deficientes, acusando uma insuficiência hepática importante, mas também apontando para uma lenta e progressiva recuperação, dando a entender que o órgão aos poucos se regenerava, mesmo que a cirrose hepática atrapalhasse – e muito – esse processo.
Eu passei a acompanhar de perto todos os exames do pai. Pedia que me passassem por fax os resultados e depois ligava prá ele, sempre procurando animá-lo, dizendo que os exames estavam muito bons. Nem sempre estavam, mas mesmo assim eu fazia isso, na esperança de manter alto o seu astral e influir na sua recuperação. Lancei todos os dados no computador. Mantenho comigo até hoje a quase totalidade dos seus exames. Vez por outra eu os mandava por e-mail ao Dr. Sílvio, que me repassava algumas recomendações e eu retransmitia imediatamente ao pai e à mãe. Tenho arquivados todos os e-mails trocados com o Dr. Sílvio. Como esse que reproduzo abaixo, enviado logo nos primeiros exames realizados em Paim Filho:

“ 04/04/2006

ASSUNTO: Notícias do Seu Egídio


Boa noite Dr. Sílvio!

Envio notícias do “seu Egídio”, para que você possa acompanhar.
Ele vem realizando exames semanais para acompanhar a evolução. Aos poucos ele vai retomando a rotina, inclusive atendendo no balcão da farmácia, coisa que gosta de fazer, além de ir à missa e caminhar um pouco, embora a fraqueza persistente, em função do quadro que apresenta. Importante é que ele não teve febre, como era sua preocupação, sinal de que a ascite, assim controlada, pode não gerar maiores problemas.
Eis o resultado de alguns itens do exames realizado ontem:
- hemoglobina: 11
- Leucócitos 4.300
- plaquetas 50.000
- Bilirrubinas 2,4
- Transaminases no limite de normalidade
- Protrombina mantida em 43%.
Esta semana pretendemos levá-lo para uma consulta com o Dr. Paulo, em Erexim, para uma avaliação.

Um abraço!

Marco “

Depois o Dr. Sílvio me respondia, dando orientações e dizendo o que achava da recuperação dele. “A esta altura do campeonato”, acredito que o pai já era um “case” para ele e sua equipe, pois reinava o ceticismo entre os médicos quanto à sua sobrevivência, pelas condições pós cirúrgicas, pela cirrose instalada, pelos índices deficientes dos exames. Mas o paciente não só teimava em ficar vivo como dava mostras de ter ganho uma sobrevida maior do que se esperava.

domingo, 13 de junho de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXXVII

Em casa, finalmente

A notícia de que o pai estava retornando naquele dia caiu com uma bomba. Apressei-me em informar a todos os parentes, amigos, colegas, com incontida euforia. As pessoas percebiam essa euforia nas minhas palavras e compartilhavam aquele momento, entendendo o sentimento que tomava conta de mim, ficando rapidamente contaminados pela mesma alegria. E completavam com palavras de incentivo. De fato, já não importava mais em que estado voltariam a ver o Bernardo, mas que finalmente voltariam a vê-lo. Vivo. Coisa impensável por um um bom tempo durante sua recuperação naquele período pós-cirúrgico em Porto Alegre.
Em Paim Filho não foi diferente. Nas cidades pequenas o "boca-a-boca" pode ser mais rápido que as ondas do rádio. Em poucas horas a cidade toda sabia que aquele personagem local a quem haviam dedicado horas e horas de orações estava voltando para casa, senão recuperado, em condições de continuar sua recuperação junto de familiares e amigos, como era desejo dele e de todos.
* * *
Mal esperei para concluir os trabalhos daquela tarde e pedi licença aos colegas da agência. Eu tinha que sair mais cedo, pois uma viagem, curta mas importante, me aguardava. Não que eu precisasse sair mais cedo, pois a previsão era de que chegariam de Porto Alegre depois das 7 da tarde, mas porque naquele dia não era mais o trabalho que me motivava e sim a expectativa nervosa de rever o pai. Sabia que o encontraria debilitado, mais magro, envelhecido, até. Mas também sabia que estaria lá um homem esperançoso, feliz com o retorno, com saudades e ansioso por reencontros. Fazia então mais de 10 dias que eu não o via, desde a última viagem a Porto Alegre. O último final de semana eu havia reservado para minha esposa e minhas filhas. Era o primeiro que eu passara integralmente com elas nos últimos 60 dias, desde a internação dele na Santa Casa. A rotina desde então, era trabalhar de segunda Sexta-Feira, viajar na Sexta à noite para a capital e retornar no Domingo. Mesmo no meu período de férias, quando a ordem se invertera, eu viajava no domingo à tarde e retornava, à vezes, apenas na madrugada do domingo seguinte. De forma ininterrupta. É assim que acontece quando se tem um familiar doente sendo tratado num hospital distante. Quem já passou por isso sabe do que estou falando. Naquele final de semana, portanto, diante do fato de que o pai já estava na iminência de receber alta, não tive como dizer que não, quando minhas três mulheres da casa literalmente me "intimaram" a ficar em São José do Ouro.
* * *
Chegamos em Paim Filho por volta das 7 da noite. Era o mês de Março e já não havia horário de verão, de modo que o sol já baixara no horizonte. Mas o calor ainda era forte. Estacionei o carro na frente da farmácia, que já havia fechado. Já na garagem da casa, ouvimos vozes, dando conta de que o pai já estava na sala. Com o coração mais acelerado, adiantei-me e abri a porta, na expectativa de vê-lo. E lá estava ele. Sentado na "cadeira-de-papai" com que lhe haviamos presenteado anos antes, rodeado pela família do Nando e alguns amigos, revendo algumas fotografias, enquanto sorria com ar cansado. Estava, de fato, muito mais magro do que eu poderia supor. Os cabelos grisalhos haviam crescido muito além do que normalmente ele deixava crescerem e sua pele, antes corada e de aspecto saudável, agora lhe dava ares de uma pessoa extremamente doente. Em dez dias, o pai havia mudado muito. Sua fisionomia não era mais aquela do "jovem sexagenário" , como ele sempre brincava, mas de um idoso de mais de 80 anos. Sem exagero. Cheguei perto dele e tive que chamar sua atenção, pois estava concentrado numa foto. O sorriso que abriu quando me viu pareceu tocar o fundo da minha alma. Abracei sua cabeça contra meu peito como se o fizesse com uma bola de futebol e beijei sua testa empapada de suor, enquanto continha as lágrimas que ansiavam em brotar dos meus olhos. Me segurei. Desta vez não. Desta vez eu não iria chorar. Desta vez eu queria rir, fazer as tradicionais brincadeiras sem graça como sempre fazíamos e conversar. Atualizar notícias. Contar dos parentes. Saber das recomendações médicas.
Então voltei-me para a porta da cozinha. A mãe estava lá, limpando alguma coisa e já preparando algo para o jantar. Me dei conta, então, de que não havia lhe abraçado. Ela voltara junto com o pai. E não recebera nenhuma atenção. Ela, que fora aquela fortaleza desde o início de nossa odisséia, não arredando pé de perto do pai um único instante, também estava ali. Também retornara. Também estava cansada. Também queria um beijo e um abraço. Fui até ela e lhe dei um abraço forte e um beijo na testa. Ela me olhou nos olhos, apontou-me o indicador e disse sorrindo: "acredita agora? Eu não disse que traria ele de volta?". Referia-se claramente àquele dia em que cheguei ao apartamento da Marília em desespero pelo fato de o Dr. Sílvio tê-lo praticamente "desenganado" antes do exame fatídico que poderia apontar uma grave complicação e levá-lo definitivamente à morte, o que não se confirmou depois. Foi naquele dia, depois de passado o susto, que ela debruçou-se em orações e passou a afirmar com impressionante segurança que o pai iria retornar vivo para Paim Filho. E mesmo nos piores momentos, quando tudo indicava o contrário, manteve sua convicção. Dei-lhe mais um abraço e só pude concordar: "é, mãe, você estava certa. Ele está aí!".