sábado, 29 de maio de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXVI


O RETORNO ESTAVA PRÓXIMO


As notícias começavam a melhorar. Cada telefonema da Mili nos dava mais certeza de que o pai poderia ser liberado, recebendo alta. Os exames de sangue apresentavam melhoras constantes, mesmo que em índices ainda muito baixos. Mas acredito que nem os próprios médicos tinham noção de como poderia evoluir o caso do pai. O fato é que naquele momento podia não fazer mais muita diferença mantê-lo no hospital ou deixá-lo retornar e seguir o tratamento em casa. A alimentação já era normal, não havia mais infecção. A etapa agora era de observar e torcer para que o fígado, mesmo cirrótico, continuasse a sua regeneração até o ponto de mantê-lo com o mínimo possível de insuficiência hepática. Com um pouco de sorte, caso o fígado conseguisse uma regeneração completa, talvez ele nem tivesse insuficiência, o que seria fantástico em termos clínicos, proporcionando-lhe uma sobrevida muito longa. Era o nosso sonho. Mas não era a expectativa dos médicos, certamente, pois as estatísticas conspiravam contra um prognóstico tão positivo. Mesmo assim acreditamos. O tempo todo. E cada boa notícia nos enchia de mais e mais esperança.

* * *

E assim, enquanto seguíamos nossa rotina, ficávamos conectados com a Mili, acompanhando com expectativa aquele bom momento. Eu ligava duas, três vezes por dia, em busca de notícias, que repassava a familiares e amigos, principalmente de Paim Filho, onde continuavam as orações pela recuperação do pai.
A partir do momento em que percebemos haver possibilidade real de alta para ele, passamos a fazer uma certa pressão sobre os médicos do HCPA, pedindo que o liberassem o mais rápido possível. Argumentávamos que sua recuperação poderia seguir normalmente em casa, que junto dos familiares e amigos ele poderia se sentir melhor e ter uma recuperação mais rápida e até dizíamos que, caso “tudo desse errado” ele poderia morrer mais feliz nessas condições... Além disso, tentávamos fazê-los compreender a nossa dificuldade em nos mantermos em Porto Alegre, falávamos dos custos, das viagens caras, enfim, usamos todos os argumentos que estavam a nosso alcance para tentar trazer o pai para casa. Acreditávamos, de fato, que isso faria muito bem a ele. E também estávamos conscientes de que se a sua vida, afinal, tivesse sido encurtada, seria extremamente importante que ele estivesse ao lado de amigos e familiares em seus momentos finais. Tudo isso passava pela nossa cabeça.
Mas deve ter sido decisivo para a liberação dele o fato de informarmos que ele poderia seguir sendo acompanhado em Erexim, no Hospital de Caridade, pelo Dr. Paulo Cavazzola, o gastroenterologista que havia diagnosticado a sua doença e que estaria a pouco mais de 70 Km de Paim Filho, sem falar que ali, em Erexim, poderíamos aproveitar o plano de saúde da UNIMED, o que não fora possível em Porto Alegre, por ser um plano regional.
Assim, no início de Março de 2006, após quase 60 dias de internação, o pai recebeu alta e retornou. De carona com com o Ique, que era Prefeito de Paim Filho e estava em viagem em Porto Alegre. Imagine-se a alegria da família e dos amigos. Foi emocionante receber aquele telefonema e ouvir a confirmação da Mili de que o pai estaria retornando naquele dia e chegaria no final da tarde.
Tente se colocar no meu lugar e sentir a sensação de “dever cumprido” que transpassou minha alma naquele momento! Era uma indescritível sensação de vitória, que coroava todo o esforço, todo o sofrimento, toda a dedicação e todo o stress vivido por alguém que assumira toda a responsabilidade de buscar a cura ou a sobrevida do próprio pai e que havia enfrentado situações as mais diversas no transcurso de quase 5 meses desde a descoberta da doença – desde a angústia pela espera de um leito na Santa Casa, passando pelo desespero da iminência da falta de recursos financeiros que levaria à falência total da família, até o ceticismo de algumas pessoas que imaginavam não termos feito a escolha correta no encaminhamento do caso... Tudo agora se apagava e era recoberto pelo manto da alegria e da satisfação de perceber que as coisas, afinal, haviam dado certo. E mais uma vez desliguei o telefone e desandei a chorar copiosamente nos ombros da Neu. Desta vez, porém, de felicidade.



domingo, 16 de maio de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXV


DEIXANDO A CTI



De certa forma, parecia que havíamos nos acostumado com a rotina e aos poucos começava a parecer distante o dia em que o pai sairia daquele hospital e retornaria para perto de nós. A sua lenta recuperação nos dava esperança, certeza até, de que isso acabaria acontecendo. Mas a sensação era estranha. Era como se o ato de assinar o documento de alta por parte dos médicos fosse algo proibitivo naquele momento. Quando retornei, lembro que passei toda a viagem de ônibus imaginando as mais diversas situações. Entre elas a possibilidade de ele nunca mais deixar o hospital. Seria trágico perdê-lo sem poder trazê-lo de volta para seus amigos, para a cidade que tanto amava, considerando a forma abrupta como tudo acontecera. E isso me angustiava muito. Lembro que num daqueles dias em que a doença lhe arrebatava a sanidade, encontrei-o chorando pela manhã, na primeira visita. Passei a mão em sua testa e perguntei sobre o que estaria acontecendo. “Estou com saudades dos meus amigos” – respondeu ele, enquanto as lágrimas desciam pelo seu rosto e já empapavam parte do lençol, fazendo crer que aquele pranto se estendera durante vários minutos. Então lhe sorri e disse que estava próximo o momento em que deixaria o hospital e retornaria para Paim Filho. Ele até parou por alguns momentos e vi seus olhos brilharem, para logo em seguida voltar a chorar. “Eu queria voltar prá poder pedir desculpas a eles...” – disse em tom choroso. Fiquei surpreso. “Desculpas? Por que pedir desculpas aos teus amigos, pai?” Ele me olhou firme nos olhos: “muitas vezes eu os tratei mal...” Ora, meu pai ter “tratado mal” aos amigos me soava totalmente absurdo. Ele não era capaz de tratar mal a uma formiga. Mas logo entendi que se tratava de saudade mesmo. Havia se quebrado uma rotina de décadas de convivência numa pequena comunidade do interior. E quase 50 dias num leito de hospital, afastado de tudo o que mais lhe dava prazer devia ser torturante, mesmo para uma mente afetada pela medicação e pela doença.
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No início da semana, já de volta ao trabalho, recebi uma ligação da Mili, num final de tarde.
- Marco, o pai foi transferido para um quarto.
- Saiu da CTI? Não acredito! – respondi com estupefação.
- Pode acreditar. Os médicos estiveram aqui pela manhã, analisaram os exames e chegaram à conclusão de que a melhora dos últimos dias é consistente. Os índices avaliados estão subindo gradativamente e se mantendo. Ele não tem mais infecção e o fígado parece que já dá conta de manter o organismo. Tiraram a sonda nasal, ele já se alimenta sozinho e não rejeita mais a alimentação.
Era a melhor notícia que eu recebia desde a descoberta da doença do pai. E naquele instante passei a acreditar mais firmemente que o veríamos em breve de volta para o seu meio, para o aconchego de sua casa, e finalmente para seus amigos.
A Mili ainda completou, : “Acho que vou ser eu que vou levar o pai para casa...”
Não me contive. Liguei para os meus irmãos, para meus tios e primos, para os colegas de trabalho. E todos ficaram muito contentes com a notícia. Depois de tudo o que acontecera, não deixava de ser um grande alento a possibilidade de rever o Bernardo. Estivesse ele do jeito que estivesse. Saudável ou doente. Importava mesmo era tê-lo de volta. A comunidade inteira ansiava por isso
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