domingo, 28 de março de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXIII



ESTRANHA PREMONIÇÃO...



Havia momentos em que a encefalopatia produzia alguns episódios comoventes e ao mesmo tempo assustadores.
Numa certa manhã, ao indagar sobre como fora sua noite, recebi inusitada resposta:
- Teria sido boa, se não fosse o barulho...
- Como assim, pai – perguntei – o barulho dos carros na avenida tem te incomodado?
- Não, não – disse ele – o barulho das sinetas, os cantos, o sino...tudo isso não me deixou dormir...
- Mas o que aconteceu, pai? Não estou entendendo... (mas já deduzindo que era outra de suas alucinações).
- Foi uma cerimônia longa e muito barulhenta...
- Mas que raio de cerimônia, pai? Continuo não entendendo...
- Ora – disse então- a cerimônia da minha morte...
E emendou:
- Foi uma cerimônia muito bonita. O padre Pedro presidiu.
E desatou a contar detalhes da missa que supostamente havia sido rezada em Paim Filho e que seria a do seu enterro.
Detalhe: o Padre Pedro a que ele se referiu havia trabalhado em Paim Filho até o final da década de 90 e nunca mais havíamos ouvido falar dele. Coincidentemente, na tarde daquele dia alguém de Paim Filho nos visitou no hospital e nos deu a notícia de que estava trocando o padre da paróquia. E adivinhem quem estava voltando? O próprio. O padre Pedro. Não é de arrepiar? Não é daquelas coisas que a ciência não explica? Como é que um paciente com encefalopatia, em meio às suas alucinações causadas pela doença pode antever, de alguma forma, que aquele Padre, justamente o personagem da imaginária “cerimônia” voltaria à cena na sua cidade natal?
De qualquer forma, acabei rindo por dentro, de tão absurda idéia. Mas confesso que ao mesmo tempo senti estar diante de algum daqueles fenômenos paranormais. Imaginar a própria morte em sonhos é algo até normal, mas ele me explicou a tal cerimônia com tamanha riqueza de detalhes que me deixou muito impressionado.
Quando contei aquilo aos meus familiares houve quem se emocionasse, indo às lágrimas. Era estranho, mesmo. Chico Xavier explicaria?

* * *

As visitas se sucediam.
Amigos e parentes apareciam todos os dias no hospital, trazendo solidariedade e tentando manter nossas esperanças na recuperação dele. Traziam notícias de Paim Filho e nos falavam das correntes de oração que eram feitas pela comunidade. Rezou-se muito. O pai era, de fato, um personagem painfilhense. Por sua profissão, pelo seu engajamento nas entidades locais, por sua participação efetiva na Igreja e por suas ações de caridade, além de uma simpatia inigualável, não havia quem não o conhecesse e que dele pudesse não gostar. Era uma figura adorável.
Um dia o Nando me ligou e me disse que o Rotary Club de Paim Filho estava promovendo uma rifa para arrecadar recursos para ajudar a família nas despesas. Os companheiros rotarianos conheciam a história da família e sabiam de nossos parcos recursos. Num primeiro momento não recebi muito bem a idéia, mas depois, quando me disseram que o Dr. Alevino estaria doando um novilho de sua fazenda para a realização da rifa, acabei aceitando aquilo como sendo uma espécie de retribuição, tantas foram as vezes em que o pai havia liderado ações semelhantes através do Rotary para ajudar pessoas necessitadas. E agora era ele nessa condições. Senti que faria bem ao Rotary. Tenho certeza que os companheiros queriam sentir que estavam fazendo a sua parte. E fizeram. Dias depois, já recuperado da encefalopatia, o pai chorou ao saber dessa história.


sexta-feira, 19 de março de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...


PARTE XXXII


A ENCEFALOPATIA




A partir do momento em que os médicos perceberam a primeira reação do fígado do pai, após 10 dias de puro ceticismo quanto às possibilidades de recuperação, passaram a dedicar ainda mais atenção ao seu caso. Continuaram ministrando antibióticos cada vez mais fortes, na tentativa de debelar a infecção, que agora representava o maior risco à sua sobrevivência. Mas principalmente, ao que parece, passaram a acreditar que era possível salvá-lo e permitir que sobrevivesse por mais alguns anos. Ficamos sabendo, tempos depois, com o pai já recuperado, que os médicos do HCPA travaram uma luta muito grande com o coordenador de distribuição de medicamentos do SUS, que num dado momento passou a questionar o uso de um antibiótico tão caro (coisa de quase R$ 1.000,00 por frasco) naquele paciente, que afinal de contas passava dos 60 anos de idade e tinha reduzidas chances de sobrevida. Mas uma vida é uma vida. E todo médico traz em si, no mais íntimo de sua vocação, a certeza de que sua missão é preservá-la, enquanto houver um fio de esperança. Era o caso. Ainda mais agora, que surgia uma tênue luzinha no final do túnel...

* * * *

Enquanto o medicamento agia, o fígado lutava para realizar suas funções de filtragem no organismo dele. Mas a insuficiência hepática oscilava e havia dias em que os exames recuavam bastante. E então o principal efeito colateral se manifestava: a encefalopatia. Esse distúrbio mental costuma acometer quem tem o fígado comprometido por alguma enfermidade mais grave ou pelo alcoolismo e manifesta-se com confusão mental, alucinações, desorientação.
Em meio a tanto sofrimento na espera da recuperação dele, nos deparamos com algumas situações muito engraçadas, que aliviavam um pouco o peso da espera.
Lembro que certa manhã (ou tarde) eu cheguei próximo ao leito e perguntei como ele estava se sentindo.
- Não estou muito contente... – respondeu com cara amarrada, como se estivesse bravo com alguma coisa.
- O que houve pai, não estão te tratando bem aqui?
- Nem sempre...
- Como assim? – indaguei surpreso.
- Veja bem, - disse ele- o que os demais pacientes dessa ala tem de diferente de mim? As enfermeiras dão coisas pra eles que pra mim não dão...
- O quê por exemplo, pai? – insisti.
- Ora, o Chopp!!!
Não me contive e desatei a rir.
- Chopp, pai? Que chopp é esse? Aqui no hospital? Ora essa...
E então ele apontou com o dedo. Sobre o balcão à nossa frente havia alguns frascos contendo soro fisiológico, medicamentos, água.
Convenhamos, confundir um frasco de soro com um copo de chopp não é algo assim tão natural... Quando contei isso à mãe e aos meus irmãos, foi uma risada só. E eu pensava comigo: “quando tudo isso acabar, vamos rir muito, junto com ele, lembrando de suas alucinações...”

* * * *

A comida que lhe serviam por via oral, tentando aos poucos retirar a sonda, tinha que ser cuidadosamente preparada. Era à base de cremes pastosos, porém sem sal, sem qualquer tipo de tempero. Devia ser gostosíssima... E não conseguíamos fazer com que comesse mais do que duas ou três colheradas. Ficávamos contentes quando conseguia ingerir pequenas porções a mais.
Num desses dias, após fazê-lo comer algumas colheradas de um creme verde, que devia ser à base de espinafre, ousei perguntar:
- E aí, véio, gostou?
- Mas “bah” – disse ele – é “súgulo”!
E de novo desatei a rir.
Súgulo é o nome de um creme preparado com suco de uva, açúcar e maisena, muito conhecido da colônia italiana, mas que hoje quase não se ouve mais falar. Em sua infância, deve ter sido a sua sobremesa mais freqüente. E agora seu cérebro rebuscava essas lembranças e confundia-lhe o paladar.
Foi realmente hilário... e de novo nos divertimos, entre preocupados e esperançosos de que o distúrbio logo passasse...