domingo, 28 de fevereiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXXI


O DÉCIMO DIA


O décimo dia!
Como se fora um número cabalístico, daqueles que parecem dividir águas, criando um antes e um depois, tínhamos nos fixado nele, fazendo parecer que não haveria outra chance. Ou o corpo dele reagiria ou caminharia para o não desejado desfecho. As coisas, porém, não são assim tão rígidas. Além disso, o Dr. Sílvio baseava-se nas estatísticas, nos seus registros pessoais, na sua experiência com os inúmeros casos idênticos com os quais já havia interagido. E era uma bagagem e tanto, que lhe conferia, de fato, credibilidade suficiente para nos fazer crer em suas afirmações. Mas também é verdade que toda regra tem exceção, até na medicina. E aí lembrávamos daquela enfermeira que nos surpreendera afirmando que nem sempre a sentença proferida pelos médicos se cumpre à risca.
De qualquer modo, todos acordamos tensos naquele primeiro dia de Fevereiro de 2006. Tanto quem estava em Porto Alegre quanto quem acompanhava à distância.
Como em todos os dias anteriores, fui para o hospital por volta das 9 horas. Quando cheguei, os médicos já o haviam examinado e não havia ninguém além dos pacientes naquela ala. No leito próximo à janela, o pai dormia profundamente, a boca entreaberta, um lençol cobria-lhe até o peito, e os tubos e fios permaneciam conectados, assim como a sonda que lhe penetrava pelo nariz e descia até o estômago para permitir a alimentação com aquelas substâncias nutritivas que se dá aos pacientes em CTI. Não quis acordá-lo. O que eu queria naquele momento era saber do exame matinal que era feito do sangue que lhe tiravam todos os dias para avaliar a capacidade do seu fígado. Era o décimo dia. Era naquele dia que saberíamos se ele iria ou não se recuperar. Ao menos pelo que determinavam as estatísticas do Dr. Sílvio, que eu sabia que já não acreditava nisso e apenas não me falava para não subtrair-me os respingos de esperança que ainda me mantinham confiante.
Subitamente dei meia volta e fui até o corredor, pois sabia que os médicos ainda estariam por aí, em algum outro quarto. Sentei-me no banco do corredor e apoiei a cabeça sobre os cotovelos, pensativo, enquanto aguardava que alguém aparecesse para conversar sobre os exames.
Da terceira porta, adiante da ala em que estávamos, surgiu de repente um médico. Levantei-me e fui ao seu encontro, deixando transparecer minha ansiedade, logo percebida por ele. Era um dos médicos que atendia o pai. E me reconheceu também, vindo em minha direção. Não sei por que, mas ao avistá-lo tive uma sensação diferente. Talvez o seu semblante denunciasse que algo diferente acontecera naquela manhã, sei lá.
- Bom dia – disse ele – você é o filho do seu Egídio, né?
- Sim, Doutor – respondi – estamos um tanto apreensivos com os exames do pai, porque hoje é o décimo dia...o Sr. sabe...o Dr. Sílvio nos disse que...
- Bem, – interrompeu ele – se o décimo dia era mesmo a vossa preocupação, acho que tenho uma boa notícia. O exame mostrou uma recuperação da capacidade do fígado do seu pai, de forma até surpreendente, porque não estávamos mais tão confiantes. O índice de TP (tempo de protrombina) subiu para 36 %...
- E?
- Bom, acho que isso significa que o fígado do seu Egídio está reagindo, ou seja, não está dando mostras de que irá “definhar”, ao contrário, isso quer dizer que a regeneração dos tecidos está acontecendo. No entanto, devo advertir a vocês que isso não quer dizer nada. Ainda. Ele tem uma insuficiência hepática de moderada a grave, que ainda pode ter um desfecho ruim. A infecção abdominal persiste muito forte, mas o antibiótico está sendo eficaz. Temos que aguardar. Desde o início temos falado que a recuperação dele seria muito, muito lenta, dependeria da regeneração dos tecidos hepáticos e qualquer prognóstico agora seria muito arriscado...
- Mas dá pra manter a esperança, ainda, Dr.?
- Sem dúvida, sem dúvida. Se não estivéssemos mais acreditando nisso, teríamos desistido do caso. A situação ainda é complicada, mas dá pra acreditar, sim.
Apertei-lhe a mão enquanto tentava esconder uma certa euforia que tomava conta de mim.
Não voltei à CTI. Não sem antes ligar para o Dr. Sílvio e para todos os familiares, dando a boa notícia. O Dr. Sílvio pareceu ficar particularmente satisfeito. Pela primeira vez depois da cirurgia ele também podia nutrir alguma esperança de que seu trabalho fora bem feito. Incrivelmente, no décimo dia- sim, no décimo dia – o fígado dele finalmente reagia...

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXX

UM INIMIGO FEROZ...


Se, por um lado, constatar que não havia ocorrido a temida "trombose da veia-porta" significava algum alento, por outro era preciso descobrir com urgência o motivo de o fígado dele ter praticamente parado de funcionar. Uma pista me fora deixada pelo Dr. Sílvio e se revelaria correta logo no início da tarde. A bateria de exames de sangue e urina confirmaram uma violenta infecção do líquido abdominal por algum microorganismo ainda não identificado. Uma infecção hospitalar. A situação era gravíssima. A segunda complicação mais temida pelos médicos nos períodos de recuperação de transplantados ou pacientes de ressecção hepática é a infecção abdominal. Não raro ela evolui para septicemia e leva ao óbito de pacientes com potencial para recuperação. Era preciso entrar imediatamente com um antibiótico potente para tentar reverter o quadro. E assim foi feito.
Enquanto a luta começava a se desencadear no organismo do pai, contra um inimigo potencialmente mortal, as funções hepáticas começaram a voltar aos níveis anteriores e logo no dia seguinte já mostravam boa recuperação. Conforme o antibiótico agia contra o microorganismo que lhe infectara as entranhas, dava uma "folga" para que a lenta recuperação do órgão seccionado tivesse prosseguimento. Mas o tempo se esgotava. 10 dias era o prazo que o Dr. Sílvio havia fixado para que se tivesse alguma esperança de "virar o jogo". No livro de estatísticas do médico, só lhe restavam cerca de 10% de chances de recuperação. Passado esse período, apontam os registros que praticamente 100% dos pacientes submetidos a esse tratamento não conseguem mais recuperar-se e caminham para o óbito.
O dia seguinte, na nossa cabeça, era o dia "D", portanto. Era o décimo dia. O último em que iríamos para o hospital com alguma esperança. Se o exame diário de sangue não demonstrasse nenhuma reação do fígado, permanecendo naqueles índices de 29 ou 30% seria hora de pensar no funeral. Era visível no semblante dos médicos o desânimo quanto ao prognóstico. A cada tentativa que fazíamos de obter uma informação, qualquer que fosse, que nos desse algum alento, só ouvíamos evasivas e coisas do tipo "tem que ter paciência, é assim mesmo..." ou "é difícil falar alguma coisa, mas o caso dele continua gravíssimo, vocês têm que se preparar para o pior..." Ou seja: ninguém mais acreditava na recuperação do pai, além de nós, que teimávamos em manter a esperança. Além de nós e de uma enfermeira que estava por ali e ouvira algumas de nossas conversas com os médicos. Quando ficamos sozinhos ao lado do leito do pai, ouvimos dela, surpreendentemente: "Não dêem bola para o que os médicos falam. Acreditem na recuperação dele. Em todos esses anos tenho visto centenas de pacientes desenganados que viveram muitos e muitos anos e viram seu próprio médico morrer antes deles..." Surpreendente por tal afirmação partir de uma enfermeira. Era algo que estávamos acostumados a ouvir. De leigos. Não de profissionais médicos. E isso só serviu para reforçar ainda mais nossa esperança.
Mas o próximo dia era decisivo. Era o 10° dia!