PARTE XXXI
O DÉCIMO DIA
O décimo dia!
Como se fora um número cabalístico, daqueles que parecem dividir águas, criando um antes e um depois, tínhamos nos fixado nele, fazendo parecer que não haveria outra chance. Ou o corpo dele reagiria ou caminharia para o não desejado desfecho. As coisas, porém, não são assim tão rígidas. Além disso, o Dr. Sílvio baseava-se nas estatísticas, nos seus registros pessoais, na sua experiência com os inúmeros casos idênticos com os quais já havia interagido. E era uma bagagem e tanto, que lhe conferia, de fato, credibilidade suficiente para nos fazer crer em suas afirmações. Mas também é verdade que toda regra tem exceção, até na medicina. E aí lembrávamos daquela enfermeira que nos surpreendera afirmando que nem sempre a sentença proferida pelos médicos se cumpre à risca.
De qualquer modo, todos acordamos tensos naquele primeiro dia de Fevereiro de 2006. Tanto quem estava em Porto Alegre quanto quem acompanhava à distância.
Como em todos os dias anteriores, fui para o hospital por volta das 9 horas. Quando cheguei, os médicos já o haviam examinado e não havia ninguém além dos pacientes naquela ala. No leito próximo à janela, o pai dormia profundamente, a boca entreaberta, um lençol cobria-lhe até o peito, e os tubos e fios permaneciam conectados, assim como a sonda que lhe penetrava pelo nariz e descia até o estômago para permitir a alimentação com aquelas substâncias nutritivas que se dá aos pacientes em CTI. Não quis acordá-lo. O que eu queria naquele momento era saber do exame matinal que era feito do sangue que lhe tiravam todos os dias para avaliar a capacidade do seu fígado. Era o décimo dia. Era naquele dia que saberíamos se ele iria ou não se recuperar. Ao menos pelo que determinavam as estatísticas do Dr. Sílvio, que eu sabia que já não acreditava nisso e apenas não me falava para não subtrair-me os respingos de esperança que ainda me mantinham confiante.
Subitamente dei meia volta e fui até o corredor, pois sabia que os médicos ainda estariam por aí, em algum outro quarto. Sentei-me no banco do corredor e apoiei a cabeça sobre os cotovelos, pensativo, enquanto aguardava que alguém aparecesse para conversar sobre os exames.
Da terceira porta, adiante da ala em que estávamos, surgiu de repente um médico. Levantei-me e fui ao seu encontro, deixando transparecer minha ansiedade, logo percebida por ele. Era um dos médicos que atendia o pai. E me reconheceu também, vindo em minha direção. Não sei por que, mas ao avistá-lo tive uma sensação diferente. Talvez o seu semblante denunciasse que algo diferente acontecera naquela manhã, sei lá.
- Bom dia – disse ele – você é o filho do seu Egídio, né?
- Sim, Doutor – respondi – estamos um tanto apreensivos com os exames do pai, porque hoje é o décimo dia...o Sr. sabe...o Dr. Sílvio nos disse que...
- Bem, – interrompeu ele – se o décimo dia era mesmo a vossa preocupação, acho que tenho uma boa notícia. O exame mostrou uma recuperação da capacidade do fígado do seu pai, de forma até surpreendente, porque não estávamos mais tão confiantes. O índice de TP (tempo de protrombina) subiu para 36 %...
- E?
- Bom, acho que isso significa que o fígado do seu Egídio está reagindo, ou seja, não está dando mostras de que irá “definhar”, ao contrário, isso quer dizer que a regeneração dos tecidos está acontecendo. No entanto, devo advertir a vocês que isso não quer dizer nada. Ainda. Ele tem uma insuficiência hepática de moderada a grave, que ainda pode ter um desfecho ruim. A infecção abdominal persiste muito forte, mas o antibiótico está sendo eficaz. Temos que aguardar. Desde o início temos falado que a recuperação dele seria muito, muito lenta, dependeria da regeneração dos tecidos hepáticos e qualquer prognóstico agora seria muito arriscado...
- Mas dá pra manter a esperança, ainda, Dr.?
- Sem dúvida, sem dúvida. Se não estivéssemos mais acreditando nisso, teríamos desistido do caso. A situação ainda é complicada, mas dá pra acreditar, sim.
Apertei-lhe a mão enquanto tentava esconder uma certa euforia que tomava conta de mim.
Não voltei à CTI. Não sem antes ligar para o Dr. Sílvio e para todos os familiares, dando a boa notícia. O Dr. Sílvio pareceu ficar particularmente satisfeito. Pela primeira vez depois da cirurgia ele também podia nutrir alguma esperança de que seu trabalho fora bem feito. Incrivelmente, no décimo dia- sim, no décimo dia – o fígado dele finalmente reagia...
O DÉCIMO DIA
O décimo dia!
Como se fora um número cabalístico, daqueles que parecem dividir águas, criando um antes e um depois, tínhamos nos fixado nele, fazendo parecer que não haveria outra chance. Ou o corpo dele reagiria ou caminharia para o não desejado desfecho. As coisas, porém, não são assim tão rígidas. Além disso, o Dr. Sílvio baseava-se nas estatísticas, nos seus registros pessoais, na sua experiência com os inúmeros casos idênticos com os quais já havia interagido. E era uma bagagem e tanto, que lhe conferia, de fato, credibilidade suficiente para nos fazer crer em suas afirmações. Mas também é verdade que toda regra tem exceção, até na medicina. E aí lembrávamos daquela enfermeira que nos surpreendera afirmando que nem sempre a sentença proferida pelos médicos se cumpre à risca.
De qualquer modo, todos acordamos tensos naquele primeiro dia de Fevereiro de 2006. Tanto quem estava em Porto Alegre quanto quem acompanhava à distância.
Como em todos os dias anteriores, fui para o hospital por volta das 9 horas. Quando cheguei, os médicos já o haviam examinado e não havia ninguém além dos pacientes naquela ala. No leito próximo à janela, o pai dormia profundamente, a boca entreaberta, um lençol cobria-lhe até o peito, e os tubos e fios permaneciam conectados, assim como a sonda que lhe penetrava pelo nariz e descia até o estômago para permitir a alimentação com aquelas substâncias nutritivas que se dá aos pacientes em CTI. Não quis acordá-lo. O que eu queria naquele momento era saber do exame matinal que era feito do sangue que lhe tiravam todos os dias para avaliar a capacidade do seu fígado. Era o décimo dia. Era naquele dia que saberíamos se ele iria ou não se recuperar. Ao menos pelo que determinavam as estatísticas do Dr. Sílvio, que eu sabia que já não acreditava nisso e apenas não me falava para não subtrair-me os respingos de esperança que ainda me mantinham confiante.
Subitamente dei meia volta e fui até o corredor, pois sabia que os médicos ainda estariam por aí, em algum outro quarto. Sentei-me no banco do corredor e apoiei a cabeça sobre os cotovelos, pensativo, enquanto aguardava que alguém aparecesse para conversar sobre os exames.
Da terceira porta, adiante da ala em que estávamos, surgiu de repente um médico. Levantei-me e fui ao seu encontro, deixando transparecer minha ansiedade, logo percebida por ele. Era um dos médicos que atendia o pai. E me reconheceu também, vindo em minha direção. Não sei por que, mas ao avistá-lo tive uma sensação diferente. Talvez o seu semblante denunciasse que algo diferente acontecera naquela manhã, sei lá.
- Bom dia – disse ele – você é o filho do seu Egídio, né?
- Sim, Doutor – respondi – estamos um tanto apreensivos com os exames do pai, porque hoje é o décimo dia...o Sr. sabe...o Dr. Sílvio nos disse que...
- Bem, – interrompeu ele – se o décimo dia era mesmo a vossa preocupação, acho que tenho uma boa notícia. O exame mostrou uma recuperação da capacidade do fígado do seu pai, de forma até surpreendente, porque não estávamos mais tão confiantes. O índice de TP (tempo de protrombina) subiu para 36 %...
- E?
- Bom, acho que isso significa que o fígado do seu Egídio está reagindo, ou seja, não está dando mostras de que irá “definhar”, ao contrário, isso quer dizer que a regeneração dos tecidos está acontecendo. No entanto, devo advertir a vocês que isso não quer dizer nada. Ainda. Ele tem uma insuficiência hepática de moderada a grave, que ainda pode ter um desfecho ruim. A infecção abdominal persiste muito forte, mas o antibiótico está sendo eficaz. Temos que aguardar. Desde o início temos falado que a recuperação dele seria muito, muito lenta, dependeria da regeneração dos tecidos hepáticos e qualquer prognóstico agora seria muito arriscado...
- Mas dá pra manter a esperança, ainda, Dr.?
- Sem dúvida, sem dúvida. Se não estivéssemos mais acreditando nisso, teríamos desistido do caso. A situação ainda é complicada, mas dá pra acreditar, sim.
Apertei-lhe a mão enquanto tentava esconder uma certa euforia que tomava conta de mim.
Não voltei à CTI. Não sem antes ligar para o Dr. Sílvio e para todos os familiares, dando a boa notícia. O Dr. Sílvio pareceu ficar particularmente satisfeito. Pela primeira vez depois da cirurgia ele também podia nutrir alguma esperança de que seu trabalho fora bem feito. Incrivelmente, no décimo dia- sim, no décimo dia – o fígado dele finalmente reagia...