domingo, 10 de janeiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXVIII



COMPORTAMENTO ESTRANHO



Naquela semana entraria em reforma todo o andar onde situava-se a CTI do pai e foi necessário transferir os pacientes para outros andares. Acabou que chegamos certa manhã e encontramos um aviso de que os pacientes daquela ala estavam agora no sétimo. Mas nada de diferente na rotina de tratamento. Apenas ficamos mais próximo do solo, só isso.
Como de praxe, encontrei o pai dormindo, ainda cheio de tubos pelo corpo e com a sonda no nariz. Aproximei-me da cama e o acordei, pedindo como passara a noite. “Bem”, respondeu como das outras vezes. “Só o barulho tem me incomodado um pouco...” Barulho??? – pensei comigo. Mas que barulho poderia haver num hospital desse porte? Será que que a direção não tomaria providências para que os pacientes ficassem confortáveis, evitando excesso de ruídos nos corredores, se fosse o caso?
“Que barulho te incomodou, pai?” – arrisquei-me a perguntar.
“Ora, aquele problema com a enfermeira. A polícia continua atrás do caso. Teve até tiroteio aqui ontem à noite...”
Meu Deus, pensei, mas que droga é essa agora? Um problema criminal dentro do HCPA? Não me parecia crível que uma funcionária envolvida em algum delito continuasse trabalhando no hospital. E nem que, sabendo disso, a administração do complexo não cuidasse de a afastar de suas funções...
Havia mais dois pacientes naquela ala. Cada leito ficava separado por uma cortina. O do pai era o último, próximo à janela. De repente um médico entrou para analisar um dos doentes, próximo à porta e ouviu-se alguns ruídos lembrando instrumentos metálicos, com certeza os apetrechos normais que um médico carrega em sua maleta. Naquele instante o pai levou o indicador até os lábios e arregalou os olhos já meio amarelados, fazendo o característico “psssssst” de quem quer silêncio, enquanto fazia sinais e apontava para o ponto de origem dos ruídos. Surpreso, parei de falar e dei um passo para trás, de onde avistei que o médico de fato examinava o paciente. Quando voltei-me novamente para o leito do pai, vi que ele levantava o lençol com uma das mãos, escondendo a outra, com a qual fazia um sinal simulando o movimento de quem aperta um gatilho de revólver. Foi uma cena hilária. Na cabeça dele, aqueles ruídos tinham a ver com a história da enfermeira. E só então eu percebi tudo: começava a acontecer o primeiro efeito da insuficiência hepática que agora passaria a ser o principal foco do tratamento: a encefalopatia. Era óbvio que nada estava acontecendo no hospital. A história da enfermeira e de seu “envolvimento criminal” não passavam de uma fantasia de seu cérebro afetado pelas toxinas que o fígado não dava conta de eliminar. Dali para diante, por alguns dias, muitas histórias semelhantes aconteceriam, até que começasse a sua recuperação. E, mesmo no nosso sofrimento, encontrávamos espaço para rir dessas situações, algumas das quais vou relatar adiante. Nesse caso, em particular, ele havia criado a fantasia de que havia mesmo uma enfermeira envolvida com algum tipo de situação delituosa e foi agregando elementos, como um ex-marido injuriado, policiais armados, tiroteio, confusão nos corredores do hospital. E o mais incrível: cultivou um medo de que se visse “envolvido na trama” e às vezes dizia temer que viessem pega-lo também. Era engraçado vê-lo falar num tom dramático, como se realmente tudo estivesse mesmo acontecendo. Depois, com mais calma, eu lhe dizia “pai, você sonhou isso”... Ele ficava com o olhar parado alguns instantes, me olhava, e então sorria, como que entendendo que tudo não passara de uma fantasia do seu cérebro. E passava, por momentos, aquela desorientação.
Quanto ao tratamento, seguia na mesma direção. Estávamos no 6º dia após a cirurgia e não havia reação. Os índices que medem a atividade hepática mantinham-se quase inertes e todos os médicos enfatizavam que as chances dele sobreviver iam ficando cada vez menores. Entendíamos isso, enquanto torcíamos para que estivessem errados. A mãe não. Essa sequer admitia a possibilidade de não trazer o pai de volta para casa. Vivo e recuperado...

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