PARTE XXIX
ERA O FIM?
O Dr. Sílvio não era médico do HCPA. Mas como tinha sido o responsável pela cirurgia, permitiam que visitasse o pai na CTI e o acompanhasse. Não sei como funcionam essas coisas, se um médico de outro hospital podia ou não acompanhar um paciente internado ali, se existe alguma legislação sobre essa prática. Mas o fato é que ele tinha trânsito livre para visitar e avaliar a evolução do pai. Obviamente, era nele que depositávamos toda a confiança, até por ser um especialista, enquanto que o HCPA deixara o pai sob cuidados de uma equipe de gastroenterologistas – correto, lógico – mas nos passava confiança saber que um especialista em fígado estava do nosso lado, acompanhando tudo.
Porém, a evolução não era boa. O órgão seccionado teimava em não reagir e por vezes dava mostras até de que poderia estar definhando. Os médicos eram unânimes num quesito: se não reagisse nos próximos dois ou três dias, o organismo se encarregaria de tomar outro rumo, levando pai inevitavelmente à morte. E houve um dia em que praticamente tivemos certeza de que seria esse o desfecho. Numa determinada manhã, o resultado dos exames de sangue diários apontaram uma queda brusca na função hepática. Os índices, que vinham se mantendo extremamente baixos, da ordem de 29 a 30%, caíram bruscamente para menos de 6%. Lembro que quando nos passaram essa informação, os médicos emendaram taxativamente: era o fim. “Preparem-se para perder vosso pai.”. Fiquei transtornado no momento. Liguei para o Dr. Sílvio e pedi que viesse até o hospital assim que fosse possível, para conversarmos, pois o pai ia ser submetido a um procedimento de ultrassonografia, para detectar alguma coisa que eu não entendera muito bem. Disse que viria assim que possível, mas não antes de pelo menos uma hora, lá pelas 11 da manhã. Entre comovido e assustado, decidi que deveria contar isso pra mãe, que ainda estava no apartamento da Marília. Esperava com isso prepará-la para o pior, sei lá. Ou talvez apenas quisesse desabafar com alguém. Liguei pra Neu e falei que preparasse a Cristina e a Gabriela para uma notícia ruim, porque naquele momento eu, de fato, entendia que os médicos já soubessem de algo muito grave que estava acontecendo com o organismo dele. Quando cheguei ao apartamento, a mãe se preparava para iniciar o almoço. Nem lembro direito como iniciei a conversa, mas quando disse ela o que estava acontecendo, ela teve uma reação que me surpreendeu e me assustou. Foi muito além do que eu esperava. Entrou em choro convulsivo e começou a se retorcer como quem tem um ataque epilético, enquanto repetia “não, não, não, não...”. Fiquei assustadíssimo e temi que tivesse um infarto ou coisa parecida. Corri até a cozinha e peguei um copo com água, adoçando com generosa colherada de açúcar e dei a ela, que mal conseguia segurar o copo de tanto que tremia. E comecei a amenizar a conversa, dizendo “calma, calma, pode ser que eles estejam enganados...de repente é só uma reação do organismo dele...” Até que consegui acalma-la. Pedi que ficasse tranqüila e voltei ao hospital. Lá, liguei para a Mili e pedi que viesse urgente para Porto Alegre. Ela não estava de férias, mas pedi que conseguisse uma licença no trabalho, pois era urgente. Eu precisava de alguém mais para dar conta da mãe. Temia pela saúde dela e por momentos me imaginava perdendo os dois, ficando “órfão” de ambos. Foi terrível. Foram momentos desesperadores.
Encontrei o Dr. Sílvio próximo ao elevador, na portaria. Subimos juntos. Eu o indagava sobre o que poderia ter acontecido. Segundo ele, a suspeita agora era de que pudesse ter havido uma trombose da veia porta. Ou seja, um coágulo poderia ter se desprendido da cirurgia e entupido a principal veia do fígado, aquela que carrega o sangue para ser filtrado. E era realmente fatal. Fosse isso o ocorrido e não haveria o que fazer. Em poucos dias o pai começaria a definhar, indo até a insuficiência hepática total e a falência múltipla de órgãos. Era a morte.
O exame apontaria isso. E ficamos na expectativa, na saída da sala de ultrassom.
De repente a maca surgiu, o pai acordado, olhando para o teto. Rapidamente as enfermeiras o conduziram de volta ao leito. Da porta da sala saiu então um médico e o Dr. Sílvio foi até ele. Conversaram. O médico balançou a cabeça negativamente. Senti um calafrio. “Foi mal”, imaginei. Imediatamente as imagens que vieram à minha mente envolviam um caixão, velório, missa, enterro... Era o fim do meu pai...
O Dr. Sílvio caminhou sério em minha direção e arrisquei perguntar: “E então, Dr. Sílvio???” “Bem”, respondeu ele, naquele seu tom calmo e direto de sempre, “menos mal...” “Como assim??” – perguntei - “não é trombose da veia porta”, respondeu como se também estivesse aliviado. “Agora vem a segunda parte: temos que descobrir o motivo pelo qual o fígado dele praticamente parou de funcionar...” Senti um certo alívio nas palavras dele... “Então, dá pra ter esperança, ainda, Dr. Sílvio?” – perguntei entre aflito e feliz. “Sem dúvida, mas temos que fazer ainda outros exames...”
Foi demais.
A situação ainda era gravíssima, mas eu tive uma sensação tão boa naquele momento que passei a acreditar definitivamente que algo de bom estava para acontecer.
Imediatamente fui até o apartamento e dei a notícia para a mãe. Serenamente, ela me levou até o quarto onde dormia e apontou para um livro na cabeceira. Era um livro de orações, nem lembro de que santo. “Eu rezei para a irmã Anastasie”, ela disse. Pra quem não sabe, a irmã Anastasie era uma freira de Paim Filho que havia morrido há alguns meses. Era uma pessoa fantástica, daquelas que só sabem ajudar aos outros, aconselhar, fazer o bem, enfim. E a mãe a admirava muito, a ponto de considerá-la santa.
“A irmã Anastasie vai nos ajudar. Ele vai se recuperar. Acreditem. Eu tenho certeza.”
Àquela altura, tudo o que significasse esperança era bem vindo. E naquele momento eu também acreditei!
ERA O FIM?
O Dr. Sílvio não era médico do HCPA. Mas como tinha sido o responsável pela cirurgia, permitiam que visitasse o pai na CTI e o acompanhasse. Não sei como funcionam essas coisas, se um médico de outro hospital podia ou não acompanhar um paciente internado ali, se existe alguma legislação sobre essa prática. Mas o fato é que ele tinha trânsito livre para visitar e avaliar a evolução do pai. Obviamente, era nele que depositávamos toda a confiança, até por ser um especialista, enquanto que o HCPA deixara o pai sob cuidados de uma equipe de gastroenterologistas – correto, lógico – mas nos passava confiança saber que um especialista em fígado estava do nosso lado, acompanhando tudo.
Porém, a evolução não era boa. O órgão seccionado teimava em não reagir e por vezes dava mostras até de que poderia estar definhando. Os médicos eram unânimes num quesito: se não reagisse nos próximos dois ou três dias, o organismo se encarregaria de tomar outro rumo, levando pai inevitavelmente à morte. E houve um dia em que praticamente tivemos certeza de que seria esse o desfecho. Numa determinada manhã, o resultado dos exames de sangue diários apontaram uma queda brusca na função hepática. Os índices, que vinham se mantendo extremamente baixos, da ordem de 29 a 30%, caíram bruscamente para menos de 6%. Lembro que quando nos passaram essa informação, os médicos emendaram taxativamente: era o fim. “Preparem-se para perder vosso pai.”. Fiquei transtornado no momento. Liguei para o Dr. Sílvio e pedi que viesse até o hospital assim que fosse possível, para conversarmos, pois o pai ia ser submetido a um procedimento de ultrassonografia, para detectar alguma coisa que eu não entendera muito bem. Disse que viria assim que possível, mas não antes de pelo menos uma hora, lá pelas 11 da manhã. Entre comovido e assustado, decidi que deveria contar isso pra mãe, que ainda estava no apartamento da Marília. Esperava com isso prepará-la para o pior, sei lá. Ou talvez apenas quisesse desabafar com alguém. Liguei pra Neu e falei que preparasse a Cristina e a Gabriela para uma notícia ruim, porque naquele momento eu, de fato, entendia que os médicos já soubessem de algo muito grave que estava acontecendo com o organismo dele. Quando cheguei ao apartamento, a mãe se preparava para iniciar o almoço. Nem lembro direito como iniciei a conversa, mas quando disse ela o que estava acontecendo, ela teve uma reação que me surpreendeu e me assustou. Foi muito além do que eu esperava. Entrou em choro convulsivo e começou a se retorcer como quem tem um ataque epilético, enquanto repetia “não, não, não, não...”. Fiquei assustadíssimo e temi que tivesse um infarto ou coisa parecida. Corri até a cozinha e peguei um copo com água, adoçando com generosa colherada de açúcar e dei a ela, que mal conseguia segurar o copo de tanto que tremia. E comecei a amenizar a conversa, dizendo “calma, calma, pode ser que eles estejam enganados...de repente é só uma reação do organismo dele...” Até que consegui acalma-la. Pedi que ficasse tranqüila e voltei ao hospital. Lá, liguei para a Mili e pedi que viesse urgente para Porto Alegre. Ela não estava de férias, mas pedi que conseguisse uma licença no trabalho, pois era urgente. Eu precisava de alguém mais para dar conta da mãe. Temia pela saúde dela e por momentos me imaginava perdendo os dois, ficando “órfão” de ambos. Foi terrível. Foram momentos desesperadores.
Encontrei o Dr. Sílvio próximo ao elevador, na portaria. Subimos juntos. Eu o indagava sobre o que poderia ter acontecido. Segundo ele, a suspeita agora era de que pudesse ter havido uma trombose da veia porta. Ou seja, um coágulo poderia ter se desprendido da cirurgia e entupido a principal veia do fígado, aquela que carrega o sangue para ser filtrado. E era realmente fatal. Fosse isso o ocorrido e não haveria o que fazer. Em poucos dias o pai começaria a definhar, indo até a insuficiência hepática total e a falência múltipla de órgãos. Era a morte.
O exame apontaria isso. E ficamos na expectativa, na saída da sala de ultrassom.
De repente a maca surgiu, o pai acordado, olhando para o teto. Rapidamente as enfermeiras o conduziram de volta ao leito. Da porta da sala saiu então um médico e o Dr. Sílvio foi até ele. Conversaram. O médico balançou a cabeça negativamente. Senti um calafrio. “Foi mal”, imaginei. Imediatamente as imagens que vieram à minha mente envolviam um caixão, velório, missa, enterro... Era o fim do meu pai...
O Dr. Sílvio caminhou sério em minha direção e arrisquei perguntar: “E então, Dr. Sílvio???” “Bem”, respondeu ele, naquele seu tom calmo e direto de sempre, “menos mal...” “Como assim??” – perguntei - “não é trombose da veia porta”, respondeu como se também estivesse aliviado. “Agora vem a segunda parte: temos que descobrir o motivo pelo qual o fígado dele praticamente parou de funcionar...” Senti um certo alívio nas palavras dele... “Então, dá pra ter esperança, ainda, Dr. Sílvio?” – perguntei entre aflito e feliz. “Sem dúvida, mas temos que fazer ainda outros exames...”
Foi demais.
A situação ainda era gravíssima, mas eu tive uma sensação tão boa naquele momento que passei a acreditar definitivamente que algo de bom estava para acontecer.
Imediatamente fui até o apartamento e dei a notícia para a mãe. Serenamente, ela me levou até o quarto onde dormia e apontou para um livro na cabeceira. Era um livro de orações, nem lembro de que santo. “Eu rezei para a irmã Anastasie”, ela disse. Pra quem não sabe, a irmã Anastasie era uma freira de Paim Filho que havia morrido há alguns meses. Era uma pessoa fantástica, daquelas que só sabem ajudar aos outros, aconselhar, fazer o bem, enfim. E a mãe a admirava muito, a ponto de considerá-la santa.
“A irmã Anastasie vai nos ajudar. Ele vai se recuperar. Acreditem. Eu tenho certeza.”
Àquela altura, tudo o que significasse esperança era bem vindo. E naquele momento eu também acreditei!