sábado, 30 de janeiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI...

PARTE XXIX


ERA O FIM?



O Dr. Sílvio não era médico do HCPA. Mas como tinha sido o responsável pela cirurgia, permitiam que visitasse o pai na CTI e o acompanhasse. Não sei como funcionam essas coisas, se um médico de outro hospital podia ou não acompanhar um paciente internado ali, se existe alguma legislação sobre essa prática. Mas o fato é que ele tinha trânsito livre para visitar e avaliar a evolução do pai. Obviamente, era nele que depositávamos toda a confiança, até por ser um especialista, enquanto que o HCPA deixara o pai sob cuidados de uma equipe de gastroenterologistas – correto, lógico – mas nos passava confiança saber que um especialista em fígado estava do nosso lado, acompanhando tudo.
Porém, a evolução não era boa. O órgão seccionado teimava em não reagir e por vezes dava mostras até de que poderia estar definhando. Os médicos eram unânimes num quesito: se não reagisse nos próximos dois ou três dias, o organismo se encarregaria de tomar outro rumo, levando pai inevitavelmente à morte. E houve um dia em que praticamente tivemos certeza de que seria esse o desfecho. Numa determinada manhã, o resultado dos exames de sangue diários apontaram uma queda brusca na função hepática. Os índices, que vinham se mantendo extremamente baixos, da ordem de 29 a 30%, caíram bruscamente para menos de 6%. Lembro que quando nos passaram essa informação, os médicos emendaram taxativamente: era o fim. “Preparem-se para perder vosso pai.”. Fiquei transtornado no momento. Liguei para o Dr. Sílvio e pedi que viesse até o hospital assim que fosse possível, para conversarmos, pois o pai ia ser submetido a um procedimento de ultrassonografia, para detectar alguma coisa que eu não entendera muito bem. Disse que viria assim que possível, mas não antes de pelo menos uma hora, lá pelas 11 da manhã. Entre comovido e assustado, decidi que deveria contar isso pra mãe, que ainda estava no apartamento da Marília. Esperava com isso prepará-la para o pior, sei lá. Ou talvez apenas quisesse desabafar com alguém. Liguei pra Neu e falei que preparasse a Cristina e a Gabriela para uma notícia ruim, porque naquele momento eu, de fato, entendia que os médicos já soubessem de algo muito grave que estava acontecendo com o organismo dele. Quando cheguei ao apartamento, a mãe se preparava para iniciar o almoço. Nem lembro direito como iniciei a conversa, mas quando disse ela o que estava acontecendo, ela teve uma reação que me surpreendeu e me assustou. Foi muito além do que eu esperava. Entrou em choro convulsivo e começou a se retorcer como quem tem um ataque epilético, enquanto repetia “não, não, não, não...”. Fiquei assustadíssimo e temi que tivesse um infarto ou coisa parecida. Corri até a cozinha e peguei um copo com água, adoçando com generosa colherada de açúcar e dei a ela, que mal conseguia segurar o copo de tanto que tremia. E comecei a amenizar a conversa, dizendo “calma, calma, pode ser que eles estejam enganados...de repente é só uma reação do organismo dele...” Até que consegui acalma-la. Pedi que ficasse tranqüila e voltei ao hospital. Lá, liguei para a Mili e pedi que viesse urgente para Porto Alegre. Ela não estava de férias, mas pedi que conseguisse uma licença no trabalho, pois era urgente. Eu precisava de alguém mais para dar conta da mãe. Temia pela saúde dela e por momentos me imaginava perdendo os dois, ficando “órfão” de ambos. Foi terrível. Foram momentos desesperadores.
Encontrei o Dr. Sílvio próximo ao elevador, na portaria. Subimos juntos. Eu o indagava sobre o que poderia ter acontecido. Segundo ele, a suspeita agora era de que pudesse ter havido uma trombose da veia porta. Ou seja, um coágulo poderia ter se desprendido da cirurgia e entupido a principal veia do fígado, aquela que carrega o sangue para ser filtrado. E era realmente fatal. Fosse isso o ocorrido e não haveria o que fazer. Em poucos dias o pai começaria a definhar, indo até a insuficiência hepática total e a falência múltipla de órgãos. Era a morte.
O exame apontaria isso. E ficamos na expectativa, na saída da sala de ultrassom.
De repente a maca surgiu, o pai acordado, olhando para o teto. Rapidamente as enfermeiras o conduziram de volta ao leito. Da porta da sala saiu então um médico e o Dr. Sílvio foi até ele. Conversaram. O médico balançou a cabeça negativamente. Senti um calafrio. “Foi mal”, imaginei. Imediatamente as imagens que vieram à minha mente envolviam um caixão, velório, missa, enterro... Era o fim do meu pai...
O Dr. Sílvio caminhou sério em minha direção e arrisquei perguntar: “E então, Dr. Sílvio???” “Bem”, respondeu ele, naquele seu tom calmo e direto de sempre, “menos mal...” “Como assim??” – perguntei - “não é trombose da veia porta”, respondeu como se também estivesse aliviado. “Agora vem a segunda parte: temos que descobrir o motivo pelo qual o fígado dele praticamente parou de funcionar...” Senti um certo alívio nas palavras dele... “Então, dá pra ter esperança, ainda, Dr. Sílvio?” – perguntei entre aflito e feliz. “Sem dúvida, mas temos que fazer ainda outros exames...”
Foi demais.
A situação ainda era gravíssima, mas eu tive uma sensação tão boa naquele momento que passei a acreditar definitivamente que algo de bom estava para acontecer.
Imediatamente fui até o apartamento e dei a notícia para a mãe. Serenamente, ela me levou até o quarto onde dormia e apontou para um livro na cabeceira. Era um livro de orações, nem lembro de que santo. “Eu rezei para a irmã Anastasie”, ela disse. Pra quem não sabe, a irmã Anastasie era uma freira de Paim Filho que havia morrido há alguns meses. Era uma pessoa fantástica, daquelas que só sabem ajudar aos outros, aconselhar, fazer o bem, enfim. E a mãe a admirava muito, a ponto de considerá-la santa.
“A irmã Anastasie vai nos ajudar. Ele vai se recuperar. Acreditem. Eu tenho certeza.”
Àquela altura, tudo o que significasse esperança era bem vindo. E naquele momento eu também acreditei
!

domingo, 10 de janeiro de 2010

NO NATAL, ELE SE FOI

PARTE XXVIII



COMPORTAMENTO ESTRANHO



Naquela semana entraria em reforma todo o andar onde situava-se a CTI do pai e foi necessário transferir os pacientes para outros andares. Acabou que chegamos certa manhã e encontramos um aviso de que os pacientes daquela ala estavam agora no sétimo. Mas nada de diferente na rotina de tratamento. Apenas ficamos mais próximo do solo, só isso.
Como de praxe, encontrei o pai dormindo, ainda cheio de tubos pelo corpo e com a sonda no nariz. Aproximei-me da cama e o acordei, pedindo como passara a noite. “Bem”, respondeu como das outras vezes. “Só o barulho tem me incomodado um pouco...” Barulho??? – pensei comigo. Mas que barulho poderia haver num hospital desse porte? Será que que a direção não tomaria providências para que os pacientes ficassem confortáveis, evitando excesso de ruídos nos corredores, se fosse o caso?
“Que barulho te incomodou, pai?” – arrisquei-me a perguntar.
“Ora, aquele problema com a enfermeira. A polícia continua atrás do caso. Teve até tiroteio aqui ontem à noite...”
Meu Deus, pensei, mas que droga é essa agora? Um problema criminal dentro do HCPA? Não me parecia crível que uma funcionária envolvida em algum delito continuasse trabalhando no hospital. E nem que, sabendo disso, a administração do complexo não cuidasse de a afastar de suas funções...
Havia mais dois pacientes naquela ala. Cada leito ficava separado por uma cortina. O do pai era o último, próximo à janela. De repente um médico entrou para analisar um dos doentes, próximo à porta e ouviu-se alguns ruídos lembrando instrumentos metálicos, com certeza os apetrechos normais que um médico carrega em sua maleta. Naquele instante o pai levou o indicador até os lábios e arregalou os olhos já meio amarelados, fazendo o característico “psssssst” de quem quer silêncio, enquanto fazia sinais e apontava para o ponto de origem dos ruídos. Surpreso, parei de falar e dei um passo para trás, de onde avistei que o médico de fato examinava o paciente. Quando voltei-me novamente para o leito do pai, vi que ele levantava o lençol com uma das mãos, escondendo a outra, com a qual fazia um sinal simulando o movimento de quem aperta um gatilho de revólver. Foi uma cena hilária. Na cabeça dele, aqueles ruídos tinham a ver com a história da enfermeira. E só então eu percebi tudo: começava a acontecer o primeiro efeito da insuficiência hepática que agora passaria a ser o principal foco do tratamento: a encefalopatia. Era óbvio que nada estava acontecendo no hospital. A história da enfermeira e de seu “envolvimento criminal” não passavam de uma fantasia de seu cérebro afetado pelas toxinas que o fígado não dava conta de eliminar. Dali para diante, por alguns dias, muitas histórias semelhantes aconteceriam, até que começasse a sua recuperação. E, mesmo no nosso sofrimento, encontrávamos espaço para rir dessas situações, algumas das quais vou relatar adiante. Nesse caso, em particular, ele havia criado a fantasia de que havia mesmo uma enfermeira envolvida com algum tipo de situação delituosa e foi agregando elementos, como um ex-marido injuriado, policiais armados, tiroteio, confusão nos corredores do hospital. E o mais incrível: cultivou um medo de que se visse “envolvido na trama” e às vezes dizia temer que viessem pega-lo também. Era engraçado vê-lo falar num tom dramático, como se realmente tudo estivesse mesmo acontecendo. Depois, com mais calma, eu lhe dizia “pai, você sonhou isso”... Ele ficava com o olhar parado alguns instantes, me olhava, e então sorria, como que entendendo que tudo não passara de uma fantasia do seu cérebro. E passava, por momentos, aquela desorientação.
Quanto ao tratamento, seguia na mesma direção. Estávamos no 6º dia após a cirurgia e não havia reação. Os índices que medem a atividade hepática mantinham-se quase inertes e todos os médicos enfatizavam que as chances dele sobreviver iam ficando cada vez menores. Entendíamos isso, enquanto torcíamos para que estivessem errados. A mãe não. Essa sequer admitia a possibilidade de não trazer o pai de volta para casa. Vivo e recuperado...