RUMO AO HOSPITAL MOINHOS DE VENTO...
No Sábado, como previsto, fomos todos à Santa Casa. Conversamos com o pai, que àquela altura já não esboçava a menor reação quanto ao que havíamos decidido. Era o cansaço físico e o sofrimento psicológico que falavam mais alto. Ele sabia de todos os nossos esforços em vão tentando fazer com que a cirurgia fosse realizada. Sabia de todos os contatos com deputados, secretários, políticos, médicos. Sabia da legião de amigos e colegas de Banco que me ligavam diariamente indignados com a situação. Sabia também que seus amigos já compartilhavam de sua angústia pela demora no início do tratamento. E, principalmente, sabia que sua doença era grave e avançava, mesmo que lentamente, como informavam os médicos. Era impossível esperar mais tempo.
Lembro que quando procuramos o chefe do setor e informamos da decisão de pedir a alta do pai sob nossa responsabilidade, ouvimos dele que estávamos “botando os pés pelas mãos”, insinuando que fazíamos a coisa errada. Discordamos dele. Talvez a “coisa errada” tivesse sido a de confiar que seríamos beneficiados pelo SUS. Ignorar tudo o que se fala a respeito da saúde no Brasil, achando que os problemas só acontecem “com os outros”. Achar que conosco seria diferente. Essa foi a “coisa errada” que fizemos: tentar beneficiar-se de um direito que deveria ser sagrado para todos os contribuintes que recolhem fortunas em impostos durante uma vida inteira e depois penam para conseguir um leito no hospital no primeiro problema grave de saúde que enfrentam. Sim, erramos feio ao incentivar o pai a pagar quase um salário mínimo por mês para um plano de saúde regional da UNIMED durante mais de dez anos e achar que quando nossos pais precisassem dele seriam prontamente beneficiados. Mas agora não. Agora era a mais acertada de todas as decisões. Por mais que nos tentassem explicar a razão de tanta demora, por mais que tentassem expor a situação da Santa Casa e suas normas internas de funcionamento, soava incompreensível deixar um paciente grave deitado em um leito por mais de 20 dias à espera de uma cirurgia, passando quase que diariamente pelos preparativos, recebendo inclusive a medicação necessária, sem que a mesma se concretizasse. Agora, já entendíamos ser uma questão de respeito com os próprios sentimentos do pai e da família. Era mesmo decisão tomada. Assim, assinamos todos os documentos, autorizações, declarações e “o escambau” que nos apresentaram e, sob nossa responsabilidade, tiramos o pai daquele hospital. As enfermeiras finalmente arrancaram-lhe o cateter que mantinham a 20 dias grudado em seu pescoço, além da agulha encravada em seu antebraço e despediram-se dele, desejando-nos melhor sorte na nova investida que faríamos, no Moinhos de Vento. O mesmo fizeram os responsáveis por aquela ala quando nos despedimos. Creio que até eles entenderam o que fazíamos. Quando me despedi do chefe do setor, pedi desculpas educadamente e ouvi dele um “não tem do que se desculpar, amigo, pois talvez eu estivesse tomando a mesma atitude se fosse meu pai...” E fiquei feliz ao ouvir isso, porque outra vez tive certeza de que a decisão era correta.
Apesar de tudo, nenhuma mágoa da Santa Casa.
Enquanto pai esteve lá, foi tratado da melhor maneira possível. Sempre brincalhão, o pai agradava as enfermeiras, e elas gostavam dele como paciente. Nunca reclamava, aceitava serenamente todos os procedimentos, submetia-se resignado a tudo o que fosse necessário. A verdade é que fomos muito bem tratados por todos e nada restou a reclamar senão da demora na realização da cirurgia. E mesmo assim temos consciência de que apenas estávamos sendo mais uma vítima de um sistema de saúde pública ineficiente no país em que mais se arrecada impostos no planeta. Não era culpa da Santa Casa, nem de seu corpo clínico. De qualquer modo, a experiência serviu para que víssemos mais de perto o que acontece com a saúde dos que, sem recursos, apelam para a saúde pública. Sem dúvida, saímos de lá mais conscientes disso.
E saímos contentes do hospital. O pai exibia um discreto sorriso e passava-nos a sensação de estar aliviado, mesmo com tudo o que estava acontecendo com ele. Visivelmente não estava confortável na Santa Casa. Não pelo atendimento, repito, mas pela demora.
Nos dirigimos até o albergue. A mãe preparou um almoço simples. Nem lembro o que comemos. Mas depois de quase um mês voltamos a almoçar todos juntos. E conversamos, e rimos, e fizemos piada de algumas situações vivenciadas até então. Por um momento pareceu que não estávamos ali por motivo de doença, mas sim para um almoço em família. Num albergue em Porto Alegre. Mas ainda um almoço em família.
Tenho fotos do pai naquele dia, no meu celular. De repente ele pareceu voltar ao normal. Alegre, conversou bastante, brincou, sorriu. Seu rosto ainda cheio e de aspecto jovial nem de longe lembrava aquele moribundo que ficara deitado num leito da Santa Casa durante mais de 20 dias. Que saudade daquele dia. Foi a última vez que o vi daquele jeito. Depois da cirurgia, veremos adiante, seu aspecto mudaria para sempre.
Viajamos todos de volta pra casa naquele sábado, com a sensação de dever cumprido. Só o Nando e a mãe ficariam em Porto Alegre. Eram eles que acompanhariam o pai no hospital. Quanto a nós, aguardaríamos o desfecho do procedimento cirúrgico e viajaríamos a Porto Alegre novamente no dia seguinte. Acompanharíamos tudo à distância, torcendo pelo sucesso do tratamento. O Nando acabaria sendo nosso interlocutor. E assim foi.
Lembro que quando procuramos o chefe do setor e informamos da decisão de pedir a alta do pai sob nossa responsabilidade, ouvimos dele que estávamos “botando os pés pelas mãos”, insinuando que fazíamos a coisa errada. Discordamos dele. Talvez a “coisa errada” tivesse sido a de confiar que seríamos beneficiados pelo SUS. Ignorar tudo o que se fala a respeito da saúde no Brasil, achando que os problemas só acontecem “com os outros”. Achar que conosco seria diferente. Essa foi a “coisa errada” que fizemos: tentar beneficiar-se de um direito que deveria ser sagrado para todos os contribuintes que recolhem fortunas em impostos durante uma vida inteira e depois penam para conseguir um leito no hospital no primeiro problema grave de saúde que enfrentam. Sim, erramos feio ao incentivar o pai a pagar quase um salário mínimo por mês para um plano de saúde regional da UNIMED durante mais de dez anos e achar que quando nossos pais precisassem dele seriam prontamente beneficiados. Mas agora não. Agora era a mais acertada de todas as decisões. Por mais que nos tentassem explicar a razão de tanta demora, por mais que tentassem expor a situação da Santa Casa e suas normas internas de funcionamento, soava incompreensível deixar um paciente grave deitado em um leito por mais de 20 dias à espera de uma cirurgia, passando quase que diariamente pelos preparativos, recebendo inclusive a medicação necessária, sem que a mesma se concretizasse. Agora, já entendíamos ser uma questão de respeito com os próprios sentimentos do pai e da família. Era mesmo decisão tomada. Assim, assinamos todos os documentos, autorizações, declarações e “o escambau” que nos apresentaram e, sob nossa responsabilidade, tiramos o pai daquele hospital. As enfermeiras finalmente arrancaram-lhe o cateter que mantinham a 20 dias grudado em seu pescoço, além da agulha encravada em seu antebraço e despediram-se dele, desejando-nos melhor sorte na nova investida que faríamos, no Moinhos de Vento. O mesmo fizeram os responsáveis por aquela ala quando nos despedimos. Creio que até eles entenderam o que fazíamos. Quando me despedi do chefe do setor, pedi desculpas educadamente e ouvi dele um “não tem do que se desculpar, amigo, pois talvez eu estivesse tomando a mesma atitude se fosse meu pai...” E fiquei feliz ao ouvir isso, porque outra vez tive certeza de que a decisão era correta.
Apesar de tudo, nenhuma mágoa da Santa Casa.
Enquanto pai esteve lá, foi tratado da melhor maneira possível. Sempre brincalhão, o pai agradava as enfermeiras, e elas gostavam dele como paciente. Nunca reclamava, aceitava serenamente todos os procedimentos, submetia-se resignado a tudo o que fosse necessário. A verdade é que fomos muito bem tratados por todos e nada restou a reclamar senão da demora na realização da cirurgia. E mesmo assim temos consciência de que apenas estávamos sendo mais uma vítima de um sistema de saúde pública ineficiente no país em que mais se arrecada impostos no planeta. Não era culpa da Santa Casa, nem de seu corpo clínico. De qualquer modo, a experiência serviu para que víssemos mais de perto o que acontece com a saúde dos que, sem recursos, apelam para a saúde pública. Sem dúvida, saímos de lá mais conscientes disso.
E saímos contentes do hospital. O pai exibia um discreto sorriso e passava-nos a sensação de estar aliviado, mesmo com tudo o que estava acontecendo com ele. Visivelmente não estava confortável na Santa Casa. Não pelo atendimento, repito, mas pela demora.
Nos dirigimos até o albergue. A mãe preparou um almoço simples. Nem lembro o que comemos. Mas depois de quase um mês voltamos a almoçar todos juntos. E conversamos, e rimos, e fizemos piada de algumas situações vivenciadas até então. Por um momento pareceu que não estávamos ali por motivo de doença, mas sim para um almoço em família. Num albergue em Porto Alegre. Mas ainda um almoço em família.
Tenho fotos do pai naquele dia, no meu celular. De repente ele pareceu voltar ao normal. Alegre, conversou bastante, brincou, sorriu. Seu rosto ainda cheio e de aspecto jovial nem de longe lembrava aquele moribundo que ficara deitado num leito da Santa Casa durante mais de 20 dias. Que saudade daquele dia. Foi a última vez que o vi daquele jeito. Depois da cirurgia, veremos adiante, seu aspecto mudaria para sempre.
Viajamos todos de volta pra casa naquele sábado, com a sensação de dever cumprido. Só o Nando e a mãe ficariam em Porto Alegre. Eram eles que acompanhariam o pai no hospital. Quanto a nós, aguardaríamos o desfecho do procedimento cirúrgico e viajaríamos a Porto Alegre novamente no dia seguinte. Acompanharíamos tudo à distância, torcendo pelo sucesso do tratamento. O Nando acabaria sendo nosso interlocutor. E assim foi.
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