PARTE XVIIMUDANÇA DE ESTRATÉGIA???Em Paim Filho começavam a circular toda sorte de boatos. O pai era uma figura muito popular, daquelas que se confundem com a própria cidade. Tinha uma vida extremamente simples e pacata, mas era participativo, especialmente no âmbito religioso. Desde cedo fora incentivado a atuar como coroinha da Igreja, aos 18 anos ingressara na Ordem Terceira Franciscana e ao longo da vida integrou toda espécie de movimento católico. Era cursilhista e membro do coral da Igreja. Desde algum tempo antes de sua doença, a mãe e ele eram “tios” do CLJ, um movimento religioso que busca aproximar os jovens da igreja. Mas não era só nesse campo que atuava. Foi presidente do Círculo de Pais e Mestres, integrou o Conselho Municipal de Desportos, foi membro da diretoria do Grêmio Esportivo Cruzeiro. Sua atuação de maior destaque, no entanto, foi no Rotary Club de Paim Filho, onde exerceu todos os cargos de diretoria, tendo também ocupado em duas ocasiões a Presidência. Não bastasse tudo isso, era dotado de um coração extremamente bondoso. No Natal e na Páscoa costumava distribuir pequenos presentes na vila pobre da cidade. Por causa disso, já acumulava mais de uma dezena de afilhados de batismo. Nas vésperas de Natal (ficamos sabendo depois de sua morte) ele ía ao açougue do Centofante, comprava alguns quilos de carne e mandava cortar em pequenas porções, que distribuía na vila do Timbó aos mais necessitados, para propiciar-lhes o prazer de “comer carne ao menos no Natal”. Na farmácia, onde atuou até alguns dias antes de morrer, cansou de vender “fiado” aos doentes mais carentes, que não tinham condições de pagar pelo remédio e não raro jamais pagavam pela mercadoria. Incansável, não reclamava de acordar em muitas madrugadas e dirigir-se até a residência de algum doente que necessitasse de uma injeção ou mesmo de algum outro medicamento, onde quer que fosse chamado.
E tudo isso é verdade, não se trata de um simples elogio a alguém que já não está mais aqui. Ele era assim mesmo. E por tudo isso era adorado pela comunidade. Natural, portanto, que a comoção tomasse conta da cidade.
Como havia saído de circulação assim, tão repentinamente, e para tão longe, as especulações sobre o seu estado de saúde acabariam sendo inevitáveis. Da gravidade do caso, no entanto, pouca gente sabia. As informações apareciam desencontradas, até porque não fazíamos muita questão de divulgar, justamente para que não começassem a pipocar as “fofoquinhas” características das pequenas cidades. Quando algum amigo ligava, eu buscava passar todas as informações. Naquele momento, no entanto, o que era possível dizer é que ele tinha um tumor no fígado e que passaria por uma cirurgia. Não se sabia o prognóstico a partir daí. O Dr Sílvio havia nos dado uma estatística meio desanimadora: as chances de ele estar vivo em 3 anos seriam de 30% após a cirurgia. Mas eram números estatísticos. Para se chegar a essa média, alguns pacientes com o mesmo problema com certeza teriam vivido menos de um mês e outros mais de 10 anos...Queríamos crer que nosso pai pudesse figurar nesse último grupo.
O problema é que demorava muito a acontecer o início do tratamento – a cirurgia. Tudo passaria por ela. E repetia-se a mesma situação anterior. Voltamos todos para casa. Esperaríamos agora ser avisados da data certa do procedimento. Apenas o Rodrigo ficou lá com a mãe. Voltamos ao trabalho. Ligávamos para Porto Alegre várias vezes ao dia. De agora em diante, com ou sem o Dr.Sílvio, o pai poderia ser levado ao setor cirúrgico da Santa Casa a qualquer momento. Lembro que numa certa manhã, por volta da 6 horas, fui despertado por um telefonema. Do outro lado da linha falava com voz apreensiva o Roberto, aquele paciente que estava na cama ao lado do pai. “Olha, véio, - disse ele – acabaram de levar o teu pai para a sala de cirurgia”... Poxa, essa sim me pegara de surpresa. Saltei rápido da cama, avisei o Nando e a Mili, liguei para o Digo... Preparamo-nos para pegar o primeiro ônibus disponível e voltar para Porto Alegre. Cerca de uma hora depois, no entanto, um novo telefonema jogava outro balde de água fria em nós. O paciente Bernardo acabava de retornar ao seu leito. A UTI fora ocupada por um acidentado de trânsito... Novamente fui ao telefone e liguei para todos, informando que outra vez cirurgia fora adiada...
E assim os dias foram passando. Por mais de uma dezena de vezes o pai foi preparado para o procedimento cirúrgico, recebendo tranqüilizantes e toda a medicação específica, para depois ser informado do adiamento... Era torturante para ele. E muito incômodo para nós, que permanecíamos apreensivos e preocupados. Eu já começava a cogitar outras alternativas. Ligava para amigos influentes na esperança de que alguém pudesse intervir, ligava para colegas do Banco, para companheiros do Rotary e do Lions. Amigos tentavam me ajudar (sempre tem alguém que conhece um diretor do Hospital ), mas, tudo em vão. Já começava a passar pela minha cabeça desistir da Santa Casa e tentar outro hospital. O Dr. Sílvio havia ficado de fazer um orçamento para uma intervenção particular, caso a gente decidisse por isso. O problema é que a família não tinha recursos. Embora as pessoas pudessem pensar o contrário, pelo fato de o pai ser sócio da farmácia, nunca tivemos posses. Oriundo de família muito pobre, o pai não tivera uma herança, nem lhe fora possível estudar para galgar algum degrau profissional mais elevado. Tudo o que conseguira até então fora ganhando um salário mínimo na farmácia até 1974 e depois com o pequeno aumento para três salários mínimos quando o Moacir Guimarães comprou a empresa do seu João Lacerda. Com 4 filhos para sustentar e com uma renda tão baixa, como acumular alguma reserva? Mesmo depois de ter conseguido, a duras penas (com dinheiro emprestado), tornar-se sócio da Farmácia Lacerda, a renda não era suficiente para permitir fazer uma “reserva”. Esse era o motivo que nos levara a tentar alguma coisa através do SUS. Da mesma forma, os quatro filhos tentavam se virar como podiam. Nenhum de nós tinha dinheiro suficiente para enfrentar um procedimento cirúrgico e um tratamento particular, normalmente muito caro, além de, logicamente,cada um ter sua própria família para sustentar e seus próprios problemas a resolver. O único que estava um pouco melhor era eu, na verdade, por contar com um salário um pouco mais alto. Mas eu também tinha meus próprios problemas, uma filha na faculdade e minha própria família para prover e o pouco que conseguira guardar mal daria para ajudar nos custos da universidade particular. O SUS parecia ser a saída mais lógica. Era imperioso que tentássemos esse caminho.
No entanto, a situação começava a ficar insustentável e eu já começava a fazer outros planos. Talvez acabasse sendo necessário mudar a estratégia. Eu esperaria o retorno do Dr. Sílvio de São Paulo e pediria que me passasse o orçamento...