COMEÇA O LONGO TRATAMENTO
No dia em que levei o pai para a primeira sessão de tratamento dos nódulos, fui supreendido por uma situação inusitada.
Enquanto aguardávamos pacientemente na sala de espera da clínica onde atendia o Dr. Paulo, pude vê-lo fazer uma ligação para o radiologista que executaria o procedimento. Do outro lado da linha, o Dr. Aldo parecia lhe “cobrar” um índice de coagulação sanguínea superior a 70% para que tudo fosse feito com segurança. O fígado é um órgão gelatinoso, por onde passa todo o sangue do corpo. Por isso mesmo, qualquer perfuração nesse tecido pode desencadear uma hemorragia, com conseqüências imprevisíveis. Até então não sabíamos disso. Ao menos não com riqueza de detalhes. Ninguém nos havia informado de haver risco no procedimento. Ao contrário, tanto os médicos de Porto Alegre quanto o próprio Dr. Paulo tratavam o assunto da alcoolização como algo rotineiro para os radiologistas.
Ouvi o Dr. Paulo responder ao interlocutor que “milagre só Jesus Cristo. Vai ter que ser assim mesmo...” – referia-se ao fato de o pai apresentar índice próximo de 50% no tempo de protrombina, aquele que mede a coagulação do sangue.
Terminada a ligação, o Dr. Paulo dirigiu-se a nós e iniciou uma conversa que no momento nos pareceu estranha:
- Bem – disse ele, num sorriso que parecia meio nervoso – todos somos adultos...quer dizer...ninguém é criança aqui...vocês sabem dos riscos...
- Riscos, Dr. Paulo? – perguntei, mostrando surpresa.
- Acontece o seguinte: trata-se de um procedimento invasivo. O fígado do Bernardo vai ser perfurado por uma agulha. Embora trate-se de um pequeno orifício, sempre existe uma possibilidade de ocorrer uma hemorragia. Normalmente sem maiores conseqüências. Mas o índice de coagulação dele está abaixo do mínimo necessário. De qualquer forma, vamos fazer assim: vamos iniciar uma transfusão de plasma, que deve elevar esse índice a níveis aceitáveis e logo em seguida o Dr. Aldo realiza o procedimento. E a gente torce para que dê tudo certo. Tudo bem?
- Ok, Paulo. Vamos encarar.
Depois de dizer isso, percebi que havia respondido pelo pai, que afinal era quem seria submetido ao procedimento e que iria correr o risco. Enquanto o Dr. Paulo se afastava para dar início na transfusão de plasma sanguíneo, voltei-me para o pai, que estava ao meu lado, cabisbaixo, fitando o horizonte que sua vista alcançava através da janela à nossa frente.
- Pai, ainda está em tempo... Se você tiver receio de correr esse risco e quiser desistir...a gente pensa melhor depois no que fazer.
- Não, filho – disse ele, com uma voz assustadoramente mansa e tranqüila – eu deixei tudo nas mãos de Deus. Desde o dia da cirurgia. Está tudo com Ele. O que tiver que ser será. Eu estou pronto...
Confesso que engoli a seco ao ouvir aquilo. E de alguma forma me senti envergonhado por fraquejar diante do risco que se desenhava, enquanto ele, que seria o personagem de tudo aquilo, demonstrava tamanha coragem no enfrentamento do que viria.
E assim o levaram. Fiquei em pé observando a maca quase desaparecer no longo corredor do Hospital de Caridade, enquanto um calafrio percorria minha espinha e aquele nó outra vez teimava em sufocar minha garganta. A coragem do pai me comovia. Era impressionante a forma como enfrentava tudo aquilo. Eu tentava me colocar no lugar dele, imaginando-me na mesma situação. E concluía que não estaria assim tão sereno. O que tinha o Bernardo de coragem tinha eu de covardia. Por certo antes de submeter-me a um tratamento desses eu antes faria um “gritedo” – armaria um barraco, faria um drama, lamentaria antecipadamente meu caminho sem volta para a morte... Dizem que diante de um iminente perigo de vida a gente arranja as forças necessárias para lutar. Pode ser. Mas o modo como o pai encarou o seu problema chamava, de fato, a atenção de toda a família. Não se ouviu um único “ai” ao longo dos três anos de sofrimento. Nem mesmo quando as agulhas da alcoolização lhe perfuravam o lado, penetrando suas entranhas para atingir os nódulos dentro do fígado, sem anestesia. Era assim o seu tratamento. Davam-lhe algum calmante e depois, guiado pelo aparelho de ultrassom, o radiologista introduzia uma longa agulha em seu abdômen, atingia o fígado e lá, dentro do nódulo canceroso, instilava de 5 a 10ml de álcool. Um álcool medicinal, tóxico para as células malignas. E para as outras ao redor. Assim, o nódulo estabilizava, deixando de expandir-se. Às vezes uma única dose bastava. Outras vezes eram necessários dois, três procedimentos idênticos no mesmo nódulo, em espaços de 60 dias. E ele agüentava tudo. A dor física. A dor moral de saber que lutava contra um inimigo que se mostrava naquele momento absolutamente invencível. A dor de ter consciência de que caminhava lentamente para a morte. A dor de ter que disfarçar perante os familiares todos os seus temores, fazendo crer que não tinha consciência de que iria morrer daquilo. Se tinha esperança na cura? Óbvio que sim. Não acredito que qualquer doente terminal, mediante o tratamento que lhe for ministrado não deposite fé na possibilidade do milagre, da reversão do quadro. É da natureza humana. E fé o pai tinha de sobra. Mas, religioso como era, por certo conversava muito com Deus em seus momentos de solidão, quando devia lhe implorar pela cura. Ou por mais tempo de vida, como recompensa pela bondade e religiosidade com que vivera até então.
O pai, naquele momento, tinha dois pequenos nódulos. E o sucesso do tratamento era uma incógnita. O Dr. Aldo foi claro na conversa que tive com ele depois, enquanto conduziam o pai para um quarto. Há casos em que os nódulos não regridem, mesmo com esse agressivo tratamento. Às vezes alguns nódulos hepáticos são tão resistentes que outros procedimentos são requeridos para controle. Mas era cedo prá tirar conclusões. Se não desse certo, pensar-se-ia em outro tipo de tratamento. Mas foi enfático: tudo era paliativo. Ganharíamos tempo. Retardaríamos um inevitável desfecho em que seu fígado não mais daria conta de brigar contra o invasor. Devíamos nos preparar. “Eu já sabia disso, Doutor” – pensei comigo.